sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

"Tecnomacumba: 15 anos de um canto de resistência contra a intolerância religiosa"



2."Tecnomacumba: 15 anos de um canto de resistência contra a intolerância religiosa" - 19 de junho de 2018
Camila Rodrigues (publicado originalmente em 19 de junho de 2018)
“A música é minha religião, acredito que através dela aconteça a comunhão
 sagrada entre as pessoas de todas as raças e crenças na celebração da vida.”
 Rita Ribeiro, encarte de Tecnomacumba, 2006

            No ano de 2003 a cantora maranhense Rita Ribeiro, que atualmente assina Rita Benneditto, começou a aglutinar músicos, artistas e produtores no sentido de pensar em um projeto musical mesclando  sons eletrônicos, a sonoridades da MPB e cantigas das religiões afro-brasileiras, num belo louvor à multiplicidade da cultura e religiosidade brasileira. Somente em 2006 foi lançado o seu Tecnomacumba, com quatorze faixas e esse é o seu quarto disco, mas até hoje ainda é o mais conhecido disco de sua carreira. Como lemos na matéria do portal O Imparcial, no ano de 2018 celebram-se os seus  quinze anos, contatando que ele tornou Rita conhecida no país e no exterior, sendo apresentado em um megafestival na cidade de Dakar (Senegal, África). No Brasil, até hoje, continua fazendo sucesso e a própria Rita comenta, no encarte, que o disco é como uma “grande gira”, que começa chamando as várias divindades pertencentes aos panteões das religiões afro brasileiras, logo na primeira faixa “Saudação/Abertura”. Como a introdução desta canção tem forte inspiração no material oral extraído das festas de terreiro, esta parte da letra não consta no encarte do disco, como se não fosse a intenção de ali  transcrever,  traduzir ou explicar  os múltiplos significados expressos e recriados a cada entoação verbal. Mesmo nesse contexto de indefinições, encontramos esta transcrição no site Vagalume:

Balorê êxu é Mojubá
Ogunhé Patacuri
Ogum é Orixá!
Kao Cabicile Xangô
Kao meu pai!
Okê Arô
Oxossi é Caçador!
Ewá Sossanha
Ewá sá
Arroboboia Oxumaré
Roboboia!
Atoto Ajuberô
Atoto Obaluaie!
É tempo, é tempo
sará tempo
Eparrei
Ora ieie o mamãe Oxum
Ora ieie o
Ô docyaba Yemanja
Ôdoia mamãe
Saluma Nanã Saluba!
Erê mim
Ibeji
Jurema
Adorei as almas
As almas adorei
Shiuépa babá Oxalá
Shiuépa!

 A partir de então são entoadas adaptações de Rita e de Jongui para algumas cantigas de Umbanda, louvando pomba giras como a Cigana  e qualidades de Exu como Meia Noite e Tranca Rua, em uma espécie de iniciação aos “trabalhos” . Então, na primeira parte do disco, cada faixa passa a abordar especificamente um orixá masculino ou  feminino.

Dentre os masculinos, o primeiro homenageado é Ogum, através da canção Domingo 23, de Jorge Ben, que no encarte é chamado Benjor, que trata do santo guerreiro São Jorge, cujo dia é 23 de abril e que, em alguns lugares do Brasil é sincretizado com Ogum, o qual também é um “cavaleiro, guerreiro, justiceiro, assim é Jorge, salve Jorge”. No arranjo adaptado de Tecnomacuba, é introduzida uma cantiga para Ogum : “a Ogum ê/Ogum é tata que malembê”, e que segundo o Dicionário de Cultos Afro-Brasileiros , quer dizer algo como “suplico ao pai Ogum”, mas que também pode significar “Ogum, pai da misericórdia”. A próxima divindade homenageada, com a canção Cavaleiro de Aruanda, de Tony Osnah, é Oxossi, que é  cantando como sendo “o filho do verde, o filho da mata, saravá nossa senhora, a sua flecha mata”. Ao final, novamente, é introduzindo uma cantiga de despedida da divindade em festa de terreiro:

”Galo canto, tá chegando a hora.
Oxalá tá me chamando, caçador já vai embora”

Para louvar Xangô o álbum apresenta a belíssima canção de Gilberto Gil chamada Babá alapalá: “pai Xangô Aganju vira egum babá alapalá, espírito elevado ao céu, machado astral ancestral do metal do ferro natural do corpo embalsamado preservado em bálsamo sagrado corpo eterno e nobre de um rei nagô: Xangô”, remetendo ao culto dos Egunguns, que seriam os ancestrais masculinos, comandados por Zazi. No Brasil, as divindades que antes eram  cultuadas em tradições diferentes em África, se mesclaram e com isso, em muitos casos, Zazi foi relacionado diretamente a Xangô, ainda que, originalmente,  tais divindades pertençam a panteões diferentes, no imaginário brasileiro ainda existe uma relação entre elas. Outro caso de sincretismo é o culto a Tempo, que na Umbanda e nas casas de Candomblé corresponde a uma divindade, mais especificamente, um Orixá ligado à ancestralidade e para reverenciá-lo, consta  no Tecnomacumba  a canção Oração ao Tempo, de Caetano Veloso:

Compositor de destinos, tambor de todos os ritmos
Tempo, tempo, tempo, tempo entro num acordo contigo
Tempo, tempo, tempo, tempo
Por seres tão inventivo e pareceres contínuo
Tempo, tempo, tempo, tempo és um dos deuses mais lindos

Lembrando sempre que, apesar do nome, Tempo não é somente tempo, é também uma  corruptela de Kitembo, Kitempo, Ndembewa. Em algumas tradições brasileiras Tempo é sincretizado a Irôko, porém lembramos, novamente, que essas divindades  vieram de cultos diferentes e como, no disco de Rita, o Tempo destacado é o Orixá, para ele cita-se uma cantiga que elenca diversos nomes dados à divindade: “Ê Tempo Macura Dilê. Ê Tempo Macura Tatá. Da Muraxó é Macuriá”.

Adentrando o grupo de cantos destinado às divindades femininas, temos a canção A Deusa dos Orixás, que Toninho e Romildo compuseram a partir de uma cantiga de terreiro que conta casos da mitologia de Iansã, e que ficou muito popular na gravação de uma das cantoras que mais representou a tradição afro-brasileira, que foi Clara Nunes:

mas Yansã, cadê Ogum? foi pro mar
na terra dos orixás, o amor se dividia
entre um deus que era de paz
e outro deus que combatia
como a luta só termina
quando existe um vencedor
Yansã virou rainha da coroa de Xangô

Ainda sobre a divindade que é a senhora dos ventos e das chuvas fortes, valente, forte e independente, ouvimos uma canção que cita vários nomes de Iansã usados nos rituais afro-brasileiros: “E damburê/ E damburê/Mavanjú/E damburê bela Oiá” e depois a canção Iansã, de Caetano Veloso e Gilberto Gil :

Rainha dos raios, tempo bom, tempo ruim
Eu sou o céu para as tuas tempestades
Um céu partido ao meio no meio da tarde
Eu sou um céu para as tuas tempestades
Deusa pagã dos relâmpagos
Das chuvas de todo ano
Dentro de mim, dentro de mim

Para Iemanjá,  ouvimos a adaptação de um canto para ela : “Eu tava na beira da praia/Vendo o balanço do mar/Quando vi uma linda sereia/Aí eu comecei a cantar”, que introduz a canção Rainha do Mar, de Dorival Caymmi:

Minha sereia é rainha do mar
Minha sereia é rainha do mar
O canto dela faz admirar
O canto dela faz admirar
Minha sereia é a moça bonita
Minha sereia é a moça bonita
Nas ondas do mar aonde ela habita
Nas ondas do mar aonde ela habita
Ai, tem dó de ver o meu penar
Ai, tem dó de ver o meu penar

 Encerrando a homenagem às Iabás (Orixás femininos), ouvimos o canto para a rainha das águas doces: “Moro mima iô/ abadô Ia ye yeu ô/”, que segundo é transmitido pela tradição significa algo como “senhora dona das águas sem sal, mãe do rio”, para então começarmos a ouvir a canção  É D’Oxum, de Gerônimo e Vevé Calazans :

Nessa Cidade Todo Mundo É d’Oxum
Homem, Menino, Menina, Mulher
Toda Essa Gente Irradia Magia
Presente Na Água Doce
Presente n’água Salgada
E Toda Cidade Brilha

A partir da metade do álbum, temos faixas tratando de tradições e modos de pensar das religiões afro-brasileiras, como a lembrança dos tempos da escravidão em  Coisa da antiga,  de Wilson Moreira e Nei Lopes, também difundida na voz de Clara Nunes:

“Hoje o olhar de mamãe marejou só marejou
Quando se lembrou do velho, o meu bisavô
Disse que ele foi escravo mas não se entregou à escravidão
Sempre vivia fugindo e arrumando confusão

Disse pra mim que essa história do meu bisavô, negro fujão
Devia servir de exemplo a “esses nego pai João”
Disse afinal que o que é de verdade

Ninguém mais hoje liga
Isso é coisa da antiga

Na regravação do divertido samba de coco Cocada, de Antonio Vieira, antigo sucesso da própria Rita Ribeiro, ela é introduzida por uma cantiga  para os santos católicos Cosme e Damião, que nas representações, sempre estão acompanhados de um menino vestido como eles, chamado Doum, sobre quem se acredita ter sido uma criança salva por eles. Em alguns lugares,  Cosme e Damião são sincretizados com outras divindades cultuadas nas regiões afro-brasileiras, os irmãos Ibeji, que são gêmeos crianças. Na faixa de Tenomacumba, o trio  aparece brincando em meio aos orixás:

Cosme e Damião
Damião cadê Doum?
Doum tá passeando é no cavalo de Ogum

Uma entidade cultuada na Umbanda e que ganha uma faixa só para si, adaptada diretamente de uma cantiga de terreiro, é Jurema:

ô Juremê, juremá
é uma cabocla de pena
filha de tupinambá
rainha das águas e areias
nunca atirou para errar.

Encerrando a “gira tecno” temos a faixa Tambor de Crioula, de Junior e Oberdan Oliveira,  sobre uma dança do Maranhão, terra de Rita, e nesse momento  começa a despedida, sublinhando a miscigenação religiosa:

ô dá licença minha gente eu vou m´embora
eu vou m´embora já está chegando a hora
eu vou m´embora mas um dia eu volto aqui
se deus quiser Jesus e Nossa Senhora

Mas, se para irem embora, nas giras, as entidades e orixás incorporados sobem da terra para alto porque estariam sendo chamadas por Oxalá, então  é significativo que o disco termine mesmo com o  Canto para Oxalá, em Iorubá , encerrando os “trabalhos”.

Comemorar a permanência do sucesso desse trabalho por mais de uma década, em uma época que já não valoriza a longevidade das produções musicais,   é não apenas reconhecer a viva e  forte presença do imaginário e das práticas das religiões afro na canção popular brasileira, através de faixas de compositores populares e também de grandes nomes, mas é também necessário e até fundamental,  porque pontua o disco como um grito de resistência contra o preconceito e a intolerância religiosa que, infelizmente, ainda é ativa no Brasil.


Referências 

RIBEIRO, Rita (Benneditto) . Tecnomacumba. Rio de Janeiro: Manaxica produções.  Biscoito Fino distribuição, 2006.   (CD).
Baba alapalá – Gilberto Gil
Coisa da Antiga – Clara Nunes
Domingo 23- Jorge Ben
Egungun – Wikipédia
Iansã – Caetano Veloso e Gilberto Gil
Iansã – Clara Nunes
Letra de “Abertura” e “Saudação”- Vagalume
O projeto Tecnomacumba – Rita Benneditto
Oração ao tempo – Caetano Veloso
Rainha do Mar – Dorival Caymmi
Tecnomacumba – Rita Benneditto – Wikipédia
CACCIATORE, Olga Gudolle. Dicionário de Cultos Afro-Brasileiros. São Paulo: Ed. Forense Universitária, 1977.
RIBEIRO, Rita (Benneditto) . Tecnomacumba. Rio de Janeiro: Manaxica produções.  Biscoito Fino distribuição, 2006.   (CD).
RITA BENNEDITTO CELEBRA 15 ANOS DE TECNOMACUMBA. In: O Imparcial.  
Antonio Vieira, Caetano Veloso, Candomblé, Clara Nunes, Dicionário de Cultos Afro-brasileiros, Dorival Caymmi, Gerônimo, Gilberto Gil, Jongui, Jorge Benjor, Junior, Nei Lopes, O Imparcial, Oberdan Oliveira, Rita Bennedittto, Rita Ribeiro, Romildo, Tambor de Crioula, Tecnomacumba, Toninho, Tony Osnah, Umbanda, Vevé Calazans, Wilson Moreira



Nenhum comentário: