Em um dia frio de verão |
CONTÉM MUITOS SPOILERS
Terminei de ler o segundo livro de janeiro e também do ano : Se eu fechar os olhos agora(2009), de Edney Silvestre. Fiquei muito satisfeita com a leitura, mais do que eu imaginei quando eu via o exemplar na biblioteca, com esse título lindo e instigante, mas como não tenho boas experiências com livros de belos títulos, dessa vez deu certo e no fim foi outro grande presente!
Eu não conhecia o autor de nome, soube pela orelha do livro que é um jornalista com experiência na área cultural, mas fiquei muito encantada ao saber que se trata de seu primeiro romance e que, em 2010, ganhou o prêmio Jabuti de melhor romance e o Prêmio São Paulo de Literatura como melhor livro de autor estreante! Grandes feitos! E não é para menos, o livro agrada demais, é divertido, mas não é raso, aliás muito ao contrário: é pesado, especialmente os temas centrais, mas a escrita e os narradores são um caso à parte. oxigenam a narrativa!
Resumindo o enredo, o livro conta a história de dois meninos de 12 anos, que numa manhã de 1961, fogem da escola, no interior do RJ e acabam encontrando o corpo nu e dilacerado de uma mulher morta com requintes de crueldade, como até um seio cortado. Na hora eles não a reconheceram, mas rapidamente souberam de tratar de Anita, a jovem esposa do dentista, que logo assumiu ser o assassino. Porém, os meninos duvidaram que ele, tão velho e franzino, teria condições de matar aquela mulher grande e forte com incontáveis facadas. Muito inspirados nos filmes que viam no cinema, resolvem investigar por conta própria essa morte, visitando locais estratégicos, como o cartório em busca de documentos e a casa da morta, de madrugada. Nesses passeios noturnos, encontram um senhor que toda noite fugia do asilo onde morava e também vagava pela cidade. Os três, então, duas crianças e um idoso, passam a investigar o caso, descobrindo uma trama intrigada envolvendo a família Marques Torres , que comandam a cidade desde os tempos imemoriais.
PERSONAGENS E SUAS TRAMAS
Centrais na trama, Paulo Roberto e Eduardo, são jovens estudantes muito amigos, saindo da infância, abrindo os olhos para o mundo adulto, para os quais terem encontrado o corpo daquela mulher foi um marco: a partir dali nada mais seria como antes. Paulo Roberto é o "mais escuro", órfão de mãe, mora com o meio irmão mais velho e o pai, que o espanca, sempre dizendo que ele merece apanhar porque ele tem o sangue ruim da mãe. Provavelmente essa mãe era negra, por isso ele é o "escuro" que o pai e o irmão. Infelizmente esse caso não é mais desenvolvido, o que seria bom, porque logo saberemos que um dos temas centrais do livro, na história de Anita, é esse ódio a mulheres negras. Já Eduardo não é rico, mas tem uma vida mais estruturada, família, uma bicicleta importada, mesmo que já antiga, é muito inteligente, vive ensinando Paulo, lhe empresta livres, inclusive o dicionário, lhe passa cola e nem mesmo para ele Paulo conta sobre a violência que sofre do pai. A amizade deles é o frescor do livro.
Outro personagem central é Ubiratan, que os meninos chamam "nosso velho", que vive no asilo, mas é muito lúcido e ativo, tanto que caminha toda madrugada, onde encontrou os meninos. Quando ele entra na investigação, ela realmente toma forma, ele é um homem maduro, conhece a gente da cidade, seus podres, e vai, ele mesmo, se envolvendo de tal forma que , em cero momento, toda o caso para si, pois o que os meninos não sabem com clareza, só desconfiam de algo, é que ele , mais jovem, foi torturado pela ditadura de Vargas , o mesmo presidente que manteria relações próximas à família Marques Torres. É Ubiratan quem dá a dica para que eles cheguem na primeira descoberta.
A primeira coisa que descobriram, no cartório, foi que Anita nasceu Aparecida, filha de uma negra com um dos poderosos Torres. No centro da trama está a obsessão dos Torres por meninas negras, que "adotam" para lhes servir de amante, como na época da escravidão. Assim foi com Elza, mãe da Aparecida/Anita, e também com ela que, parda, nasceu clara de olhos verdes, sendo obrigada a se passar por branca quando saiu do orfanato para se casar com o dentista.
O marido de Anita era um homem religioso, atendia os pobres por caridade, no entanto era um homossexual reprimido, só casou com a jovem Anita bem mais velho, para assistir e fotografar ela praticando os atos mais libidinosos com seus ex colegas de seminário, os quais, certamente, ele desejava secretamente. Embora a prática tivesse que ser secreta, é claro que a cidade toda sabia da história de que Anita dormia com todo mundo, era a mais vagabunda da cidade, etc.
Assim como sua mãe Elza e sua avó Madalena, Aparecida teve que abrir mão de si mesma e de se transformar num objeto para o prazer dos poderosos da cidade. E o seu final, um feminicídio propriamente dito, foi a ter o corpo dilacerado com muito ódio e abandonado ao relento, o que foi aceito por todos, pois aquela mulher, enfim purgava os pecados da cidade toda.
POSTAGENS DURANTE A LEITURA
Embora eu tenha passado uma semana com esse livro sem abri-lo, quando o fiz, a leitura foi rápida, pouco mais de dez dias.
Vejamos como fui comentando
16 DE JANEIRO
OLHOS: Há mais de uma semana eu emprestei da biblioteca "Se eu fechar os olhos agora",do Edney Silvestre, meu próximo livro,mas ainda não consegui começar a ler, pois a ressaca da leitura após Carlabê não me deixava. Espero que se resolva.
Novamente eu escolhi o livro pelo título, mesmo sabendo que assim as chances de decepção são enormes, mas sobre esse eu acho que vai dar certo, ganhou o Jabuti de melhor romance 2010, e conheço a história por cima, é um livro "de época" e sei que aborda o racismo e, pelo título, uma procura para ouvir (não ver) dentro de si mesmo as vozes do passado. Adoro essa ideia. Adoro esse título. Tomara que goste!
17 DE JANEIRO
OLHOS : "... hoje eu sei que nos acontece a todos,na hora que a vida abandona nosso corpo e ele todo se relaxa, e o esfíncter se abre e...Essa também era uma palavra que eu nunca tinha ouvido. Nem lido. Esfíncter. Eu tinha doze anos e palavras como essa não eram ditas na minha casa. A gente não conhecia palavras assim. " (Se eu fechar os olhos agora,p.8
Eu também não conhecia essa palavra, mas achei genial a maneira que romance mostra que quem vai narrar é alguém já adulto, que tem vocabulário, mas que na época narrada, tinha apenas doze anos e nunca tinha ouvido falar em Esfíncter.
21 DE JANEIRO
22 DE JANEIRO
OLHOS: Só tinha lido a introdução,mas como tive que renovar o empréstimo por mais duas semanas, só agora realmente comecei a ler o romance. Embora o tema seja bem pesado, trata-se de um feminicídio : dois amigos de doze anos encontram o corpo de uma mulher morta de forma brutal numa cidade do interior do RJ em 1960 e passam a investigar quem a matou. A leitura é muito agradável, pois entramos na mente dos meninos que estão descobrindo a vida. Embora não seja rico, Eduardo, "o menino comprido" é filho de uma família estruturada com mãe e pai, enquanto Paulo, "o menino mais escuro", mora com o pai que o espanca e irmão mais velho aleatório e não tem ninguém para cuidar dele. O mais legal do livro até agora é a amizade entre eles... Vamos ver como vão investigar a história da morte de Anita, a mulher do dentista...
23 DE JANEIRO
OLHOS : No romance, um dos meninos que acharam a mulher morta, já adulto, fecha os olhos e tenta rememorar aquele dia muitas vezes . Mas a memória é também construída e sempre duvidosa:
"Eu ouvi, mesmo,ele duvidaria, passados tantos anos,a voz que agora permeia essas recordações? Ou acrescentei a música a lembrança daquela noite? Imaginei,imaginei ali, imaginei então, que a mulher que só tínhamos visto morta, em vida gostava do bolero de Augustín Lara. Que ouvia Noche de Ronda na vitrola, ou na rádiovitrola (sic), ou no toca-fitas. Ou soube mais tarde que ela se embalava em canções assim chorosas, lamentos de amores pedidos, súplicas nostálgicas.
Não.
Não.
Eu nem sei como era a vida dela naquela noite. Imaginei a canção mais tarde. Ouvi canção mais tarde. A música em espanhol, a voz na noite, tudo foi acrescido e... Não. Não. Não. Tenho certeza:ouvi naquela noite. Uma voz de homem.Acho que era. Faz sentido: voz masculina. 'Ella se fue', ele canta . Quem lamentava o abandono era ele. Uma voz masculina. Acho. Voz masculina, grave. Na mesma noite do dia em que encontramos o corpo dela. (Edney Silvestre. 'Se eu fechar os olhos agora',p. 35)
'Imaginei'. 'Acho. Tenho certeza'...
24 DE JANEIRO
OLHOS: Nem cheguei na metade, mas o livro começou a se definir melhor. Agora Paulo e Eduardo, vagando pela cidade na madrugada para investigar a morte da mulher do dentista, conheceram um idoso que foge do asilo toda noite e o convidaram para investigar também. Interessantíssimo porque os garotos de doze anos, quase crianças, e o que chamam de "nosso velho", juntos podem passar desapercebidos nos lugares. Já descobriram coisas muito importantes sobre a verdadeira identidade de Anita, a morta, que não revelo aqui para não dar spoiler (pelo menos por enquanto), mas que pode ter tudo a ver com a causa de sua morte violenta. Tô amando essa leitura!
26 DE JANEIRO (ouvindo Fica comigo esta noite, com Nelson Gonçalves, música citada no romance)
OLHOS : Estou há poucas páginas do final do livro e, como vinha reparando, embora se trate da investigação de um feminicídio, o crime em si, como e quem executou, foi o que menos me importou, mas sim o seu motivo que revela uma sociedade interiorana hipócrita e conservadora. Mas sobretudo, o sabor do romance é a forma empolgante como foi narrado, por quantas vozes? Ainda não sei como certeza , mas sei que é sempre em forma de diálogos que mostram um Brasil profundo! Embora eu tenha dito,dias atrás, que a obra não chama a atenção pelas inovações literárias (estou com Carlabê na cabeça!), agora nos finalmentes , sei que a narrativa vai ter um final, que ainda não li, mas sei que vem narrada de forma não cronológica e talvez um pouco diferente da toada quase oral do livro até então. Não sei se é realmente um "plot twister" (ainda não sei muito usar esses novos termos...), mas é uma modificação no tempo e na narrativa que eu não esperava. Sim, já estou com saudades dos meninos Paulo e Eduardo e também do "nosso velho" Ubiratan, mas sobretudo, vai demorar para esquecer da jovem morta com requintes de crueldade e cuja morte ninguém lamentou!😢
Como acontece quando eu gosto muito de um livro,gravei até um pequeno vídeo ao final. Quando os meninos visitaram o barraco de Madalena, avó de Anita, a mulher que haviam encontrado morta, eles já sabiam que ela nascera pobre, de nome Aparecida e foi resgatada de um orfanato para se casar com o dentista. O ingênuo menino Eduardo, que nunca tinha estado numa casa tão miserável e pouco sabia sobre as limitações das mulheres pretas, pardas e pobres, começa a se perguntar porque Anita não ajudava a avó
Madalena, Elza, Aparecida/Anita. Ficou muito marcada em mim essa leitura da terrível história de uma linhagem de mulheres com seus corpos usados
Ao mesmo tempo em vivíamos amargos dias de misoginia literária , eu estava lendo esse livro super centrado nessa questão. Osso. Mas super Super recomendo a leitura deste romance!