Um pedaço da minha tese onde eu trato do tempo nos Cadernos Manuscritos de Guimarães Rosa :
"Destaca-se nesse material, especialmente para nós que desejamos repensar os questionamentos da História ali executados, que, tal qual acontece na experiência vocal, o tempo cronológico não é decisivo ali: na maioria dos Cadernos não encontramos nenhuma data, embora esses documentos, ainda assim, possuam sua historicidade . De qualquer forma, também é possível localizar neles algumas sutis marcas temporais, como quando Guimarães Rosa cita a neta Ooó (Vera Tess) ou algum dos textos que escreveu para a revista Pulso, indicando que aquelas inscrições foram feitas por volta da década de 1960, período no qual o autor contribuiu para tal periódico. Mas esse tipo de referência não cristaliza o tempo no manuscrito: não podemos dizer, por exemplo, que todo ou parte do Caderno no qual a data aparece foi preenchido naquele mesmo período, porque não podemos nos esquecer de que, na verdade, estamos defronte de um manuscrito literário e que seu tempo é aquele não linear da criação. Como o escritor possuía grande quantidade de Cadernos e poucos foram preenchidos até a última página, podemos cogitar que eles não eram usados de forma contínua, mas sim que seu emprego obedecia a alguma regra de utilização que desconhecemos. É justamente por causa de tal indeterminação temporal do manuscrito que é possível que coexistam ali as várias temporalidades distorcidas do processo de criação: a de quando a enunciação vocal foi ouvida, a de quando o autor a registrou, a de quando ele a reenunciou; a de quando ela foi revisada; e a de quando foi reinventada pela escritura."
RODRIGUES, Camila. "Escrevendo a lápis de cor: infância e história na escritura de Guimarães Rosa", p. 148-9.