Um
samba mais negro : Os Afro Sambas de Baden Powell e Vinicius de Moraes (1966)
Camila Rodrigues (publicado originalmente
em 5 de outubro de 2018)
“Tem
sete cores sua cor
Sete
dias para a gente amar”
(Canto de Xangô – Baden Powell e
Vinicius de Moraes)
Ainda que já tenhamos abordado
outros artistas na coluna História Cultural, é neste texto que trataremos
daquele que é reconhecido oficialmente na história da canção brasileira como o
álbum que introduziu a cultura negra na canção nacional, que é o disco
”Afro-Sambas”, do violonista Baden Powell e do poeta e diplomata Vinicius de Moraes, primeiro gravado em 1966.
Desde o início a ideia dos compositores
era a de gravarem um álbum conceitual, ou seja, que se propusesse a ser
mais do que um simples disco musical, pois também abordaria, de forma
bastante clara, pela sonoridade, o que
Isabela Silva (UNESP) chamou de questões “poético-políticas” importantes
: o conteúdo conceitual dos Afro-Sambas versava sobre a questão racial.
Mesmo que as historinhas sobre o
nascimento deste álbum sejam marcadas por uma zona de penumbra, é o próprio
Baden Powell quem, na entrevista para o programa Ensaio (TV Cultura), nos conta
que seu encontro com Vinicius de Moraes se deu em meados da década de 1950,
quando ele trabalhava como músico em uma boate
em Copacabana (RJ) e esta era frequentada por artistas como Vinicius de
Moraes e seu então parceiro musical da Bossa Nova Tom Jobim, que estavam
compondo para a trilha sonora da peça
teatral Orfeu da Conceição (1954),
escrita por Vinicius, o que faz desta peça um pano de fundo para a própria ideia dos Afro Sambas.
Nesta peça, Vinicius transpõe a
tragédia passional grega de Orfeu à
realidade das favelas cariocas. Segundo o blog Efemérides do éfemello, que
apresenta algumas imagens de época, durante a exibição uma declaração de
Vinicius era exposta ao público :
Esta
peça é, pois, uma homenagem do seu autor e empresário,
e de cada um dos elementos que a montaram, ao negro brasileiro, pelo
muito que já deu ao Brasil mesmo dentro das condições mais precárias de existência.– Vinicius de
Moraes.”
Embora pouco conhecido atualmente,
cabe lembrar que aquele espetáculo marcou a primeira vez que todo o elenco de uma peça teatral, que era
composto em sua totalidade de atores negros, pisava no palco do Teatro
Municipal do Rio de Janeiro, causando reações encantadas mas também polêmicas
por conta do racismo. Vinicius parecia
querer enfrentar a controvérsia usando a favor disso toda a visibilidade que
seu nome de poeta e compositor lhe garantiam. Em 1959 a peça teatral, que Vinicius demorou doze
anos para concluir, inspirou o francês Marcel Camus para escrever o roteiro de
seu filme Orfeu Negro, que foi gravado no Brasil, contendo apenas atores negros
e que depois ganhou uma série de prêmios como a Palma de Ouro e o Oscar de
melhor filme estrangeiro. Em 2018, quando a questão da representatividade negra
virou assunto capital pelo sucesso do filme de herói da Marvel, Pantera Negra, com seu elenco todo
negro, é interessante resgatar e
problematizar a antiga película que conta a história de Orfeu nos morros
cariocas . Dizemos isso porque, ainda
que estivesse ciente de que seu olhar para o negro residente no morro era
externo, nos conta Marina Malka,
que o próprio Vinicius, só assistiu ao
filme de Camus quando ele estava pronto e o detestou por completo, alegando que
o filme mostrava uma imagem estereotipada do brasileiro como pobre alegre e alienado, o que não se
encontraria em sua peça, ou seja, não bastava apresentar os negros, era preciso
atentar para a forma como os representava. Trazemos tudo isso para começar a
sublinhar o interesse de Vinicius na cultura negra e, consequentemente, em sua
musicalidade.
Foi neste contexto que ocorreu a
aproximação entre os parceiros musicais Vinicius e Baden, o que o
instrumentista explica em um depoimento disponível no Youtube:
(certa vez) nós conversamos sobre a Bahia, que
eu também já conhecia e um pouco essa coisa de Candomblé, Vinicius também, e eu por outro lado tinha mais acesso a isso
porque eu era do subúrbio, Vinicius era diplomata e eu sabia dos negócios de
Candomblé, essas coisas.
Conta-se que a dupla de músicos
ficou internada no apartamento de Vinicius no Rio por cerca de três meses até terminarem de
compor as faixas que seriam gravadas de forma ainda muito rudimentar pelo Selo
Forma, de Roberto Quatin resultando em uma sonoridade cheia de ruídos para nossos ouvidos no seculo
XXI.
O disco contém oito faixas em LP
e por isso dividido em duas partes, ou lados, com quatro músicas cada um e
embora não possamos recriar exatamente o impacto daquele álbum
para um ouvinte na década de 1960, na
leitura do álbum feita por Isabela Silva (UNESP), considerar a divisão dos dois lados pode nos ajudar a
sintetizar e conceber uma opinião geral sobre o disco. Segundo ela o lado A nos
apresentaria uma sonoridade muito ligada a referências e musicalidades mais
baianas e o lado B mais cariocas.
O disco começa com “Canto de
Ossanha”, sua faixa mais famosa, regravada por outros interpretes e bastante
conhecida , sua letra faz referência a
lendas do orixá Ossanha, que segundo a
Mitologia dos Orixás, era invejado por
conhecer todos os segredos das folhas e que no samba aparece como alguém cujo canto se deve temer
:
Coitado
do homem que cai
No
canto de Ossanha, traidor
Coitado
do homem que vai
Atrás
de mandinga de amor
Na faixa seguinte, “Canto de
Xangô”, ouvimos uma das mais fortes representações de negro na canção
popular,aquele que carrega em si uma
rica ancestralidade:
Eu
vim de bem longe
Eu
vim, nem sei mais de onde é que eu vim
Sou
filho de Rei
Muito
lutei pra ser o que eu sou
Eu
sou negro de cor
Mas
tudo é só amor em mim
Também nesta canção somos
introduzidos à ideia que vai sustentar as letras dos Afro-sambas em geral, a de
que a vida é amar e amar é sofrer :
Mas
amar é sofrer
Mas
amar é morrer de dor
Nas duas últimas canções do
primeiro lado do LP entramos diretamente nas referências ao tema marítimo do
cancioneiro de Dorival Caymmi, mais especialmente o desenvolvido em seu álbum Canções Praieiras (1954), no qual Caymmi
revoluciona a forma de tocar violão pela influência sutil de formas refinadas
da musicalidade popular como o jazz, aliada a canções inspiradas nas cantigas
de trabalho dos pescadores baianos, que certamente influenciaram muito nosso
violonista fluminense. Porém cabe lembrar que, apesar de reconhecido como grande
músico popular brasileiro, Baden Powell estudou muito os compositores clássicos
e esse tema era um dos que o uniu a
Vinicius de Moraes, conforme ele mesmo conta na sua entrevista para o programa
Ensaio. Mas no que se refere ao repertório popular, um diálogo com o imaginário
marítimo da Bahia de Caymmi nas Canções
Praieiras se faz presente ali. No belo tema “Bocochê”, sofrendo de amor,
uma moça busca reencontrar seu perdido
amado, nos braços da morte, no fundo do mar:
Menina
bonita, pra onde é “qu’ocê” vai
Menina
bonita, pra onde é “qu’ocê” vai
Vou
procurar o meu lindo amor
No
fundo do mar
Podendo responder diretamente à
narrativa de tantas letras do disco Canções Praieiras (1954) de Caymmi, nas
quais muitas vezes se narra o desaparecimento
de pescadores no fundo do mar. Na canção dos Afro-sambas, além da letra, também a melodia
nos leva ao fundo do mar quando entoa :
nhem
nhem nhem
é
a onda que vai
nhem
nhem nhem
é
a onda que vem,
remetendo ao vai e vem das ondas
do mar. Como já estávamos no fundo do mar , a última canção do lado A é o
belo “Canto de Iemanjá”, um lamento de
amor e morte:
Se
você quiser amar
Se
você quiser amor
Vem
comigo a Salvador
Para
ouvir lemanjá
A
cantar, na maré que vai
E
na maré que vem
Do
fim, mais do fim, do mar/
Bem
mais além
Do
que o fim do mar
Bem
mais além
Mas para além das influências
baianas e considerando que todo samba tem em si uma raiz afro, é preciso
destacar que o som que Baden estava instituindo ali era um tipo que ele chamou
de “afro-brasileiros” e que, em depoimento disponível no Youtube, assumiu ter sido ele quem começou
a criar, numa interpretação de fora a respeito da cultura do negro:
fui até eu que dei uma levantada
no tipo de samba, porque tem um samba mais escuro, mais negro, que tem raízes
mais negras. Tem um tipo de samba que é assim, é um samba lamento, esse samba é
que tem as raízes mais próximas ao afro.
E reforçando que estava falando
de negros brasileiros, conclui com uma referência a História do Brasil ao
afirmar que o afro samba é um lamento especial devido ao estilo do cântico, que vem dos
cantos gregorianos, que quem trouxe para o Brasil foi os Jesuítas, quando
vieram catequizar os índios aqui. Tudo isso tem uma ligação.
Musicalmente, além de Caymmi, os
compositores dos Afro-Sambas também foram diretamente afetados pelo LP Sambas de Roda e Candomblés da Bahia (196?),
que hoje está disponível na íntegra no Youtube, e que na época Vinicius havia
ganho de um amigo baiano e mostrou a
Baden, encantando- o com a beleza da sonoridade daquele som tão próximo ao que
se ouve em rituais e festas do Candomblé e também da Umbanda.
Como já apontamos, nas faixas do
lado B vemos aparecer mais referências
ligadas ao cenário afro-brasileiro do Rio de Janeiro. Na primeira faixa
temos uma das mais sofridas canções do álbum, “Tempo de amor”, onde ressurge a
ideia de que amar é sofrer, que perpassa todo o álbum, e aqui ressurge com toda
força:
Ah,
bem melhor seria
Poder
viver em paz
Sem
ter que sofrer
Sem
ter que chorar
Sem
ter que querer
Sem
ter que se dar
Mas
tem que sofrer
Mas
tem que chorar
Mas
tem que querer
Pra
poder amar
Ah,
mundo enganador
Paz
não quer mais dizer amor
Para o professor de literatura José
Miguel Wisnik (USP), na década de 1960 o então poeta de livro Vinicius de
Moraes devassou a fronteira entre a poesia escrita e a cantada, gerando
gerações de poetas letrista. Nós
lembramos que este compositor também inaugurou uma espécie de educação
sentimental que aposta na vida como uma experiência de amor e paixão, com suas
alegrias e sofrimentos, o que é uma característica das composições populares de
Vinicius de Moraes e certamente conversava bastante com o ideário poético de
autores como o poeta chileno Pablo
Neruda, que era seu amigo.
A segunda música do lado B,
“Canto do Caboclo Pedra Preta” traz à tona uma experiência que teria sido
recolhida num terreiro carioca, cujo pai de santo era o polêmico Joãozinho da
Goméia, sendo o Pedra Preta a entidade que este incorporava. Segundo a leitura
de Isabela Silva (UNESP),
A canção começa com a voz de
Vinicius de Moraes cantando solo “Olô Pandeiro”, e então ouvimos o soar dos
atabaques, e então “Olô Viola”, quando ouvimos o dedilhar do violão de Baden,
numa relação direta entre a evocação do instrumento percussivo e som do
atabaque, e do instrumento de cordas, e o violão de Baden,
remetendo a todo um imaginário
musical popular brasileiro. Segundo levantamento do IPHAN lembrado por Silva, o
samba de roda e também a viola são muito
utilizados nos cultos aos caboclos de todo o Brasil. Na terceira faixa deste
lado, “Tristeza e Solidão” canta-se:
Sou
da linha de umbanda
Vou no babalaô
Para
pedir pra ela voltar pra mim
Porque
assim eu sei que vou morrer de dor,
retomamos à temática do viver é
sofrer por amor, mas dessa vez citando a “linha de Umbanda”, que pode ser a
própria religião afro brasileira ou mesmo o Candomblé nação Angola, que também
cultua entidades como os caboclos.
Por último temos o belo e triste
“Lamento de Exu”, uma peça instrumental, pontuada por lamentações vocálicas,
abrindo os caminhos de saída deste
álbum, que desde o início
procurou desvendar as sete cores contidas na pele negra, o que na década de
1960 era, e ainda é, uma questão política séria a ser abordada.
Porque este disco é tão importante, lembramos que na década de 1990 Baden Powell
regravou a obra, iniciando uma nova fase para o projeto e sobre isso trataremos
em um próximo texto. Por hora deixamos o convite para você compartilhar e
comentar este post sobre um disco tão sensacional como é este.
Refências
Filme, discos e
vídeos
Orfeu (Filme) Direção:
Marcel Camus. Produção Sacha Gordine. França, Itália e Espanha , 1959.
Bibliografia
NERUDA, Pablo.
Cem sonetos de amor. Trad. Carlos Nejar – Porto Alegre (RS) : L & PM, 2007.
PRANDI,
Reginaldo. Mitologia dos orixás. São
Paulo: Companhia das Letras, 2011.
TORRES, Roberto.
Sambas de Roda e Candomblés da Bahia – O disco que inspirou os Afro Sambas em
Baden e Vinicius. In Jornal A Tarde, de Salvador, Bahia, em 06/12/2003.
WISNIK, José
Miguel. A Gaia ciência – Literatura e música popular no Brasil. In: MATOS, C.
N.; MEDEIROS,F.T e TRAVASSOS, E. (org). Ao Encontro da palavra Cantada: poesia,
música e voz. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2001.