quarta-feira, 23 de abril de 2014

Ofício do historiador



Não é só porque eu adoro o Robert Darton, é que ele realmente escreve coisas muito boas, especialmente para o historiador que trabalha com arquivos e que depois tem de relatar sua consulta em uma narrativa, como este trecho :
"A caixa de arquivos - que continha os registros dos interrogatórios de espiões e anotações misturados sob a etiqueta 'Caso dos Catorze'- pode ser entendida como um aglomerado de pistas para o mistério que denominamos 'opinião pública'. Que tal fenômeno existisse 250 anos atrás é algo que dificilmente pode ser posto em dúvida. Depois de ganhar força durante décadas, ela desferiu o golpe decisivo quando o Velho Regime ruiu, em 1788. Mas a rigor, o que era isso e como afetou o curso dos acontecimentos? Embora tenhamos vários estudos acerca do conceito de opinião pública como tema de reflexã filosófica, possuímos pouca informação sobre a maneira como ela funcionava na prática.De que forma podemos entendê-la? Devemos encará-la como uma série de protestos, que batem como ondas contra a estrutura do poder, em crises sucessivas, desde as guerras religiosas do século XVI até os conflitos parlamentares da década de 1780? Ou como uma atmosfera de opiniões, que muda conforme os caprichos dos determinantes sociais e politicos? Como um discurso ou como um amontoado de discursos concorrentes, desenvolvidos po grupos sociais de bases institucionais diferentes? Ou, ainda, como um conjunto de atitudes, oculto sob a superficie dos fatos, mas potencialmente acessíveis aos historiadores por meio de pesquisas e análise? É possível apresentá-la para o exame de vários pontos de vista; porém, tão logo conseguimos uma imagem mais definida, ela se embaça e se dissolve , como o Gato Cheshire." 
(DARTON, Robert. 'Poesia e política'. São Paulo: Cia das Letras, 2013, p. 18)

A analogia entre os fragmentos de documentos de arquivo e a figura do Gato Cheshire, aquele que, vai paulatinamente, desaparecendo a olhos vistos, é das mais fieis a quem já mergulhou em aquivos, não é?

domingo, 20 de abril de 2014

"Poemas para ouvir: uma interpretação dos cadernos de estudos para a obra de Guimarães Rosa"

Imagem de um manuscrito avulso de "Grande Sertão: Veredas", publicada na
Revista de Estudos Avançados, no. 58, 2006, p.92

Aos interessados nos processos de criação literária, muito já se falou a respeito das tão comentadas cadernetas de João Guimarães Rosa, entretanto - talvez porque se pensasse que se tratava da mesma coisa - pouco se falou sobre seus  Cadernos manuscritos. Mas agora acaba de ser publicado na Revista Manuscrítica um artigo que escrevi, no qual proponho uma interpretação deles, enxergado-os como documentos autônimos, que são diferentes das cadernetas, e que nos contam muito sobre os processos de escritura de Rosa e também  dos do ofício dos literatos no século XX. 
Para fazer o download do artigo "Poemas para ouvir: uma interpretação dos cadernos de estudos para a obra de Guimarães Rosa", clique aqui .

Esta é a minha primeira grande publicação e sei  que sofro do mal do pioneirismo, então meu  artigo deve ter muitos tropeços, mas acho que aquela fonte é  rica e capaz de suscitar diálogos e debates. Ainda que não tenha saído na revista por algum engano editorial, cabe esclarecer que o conteúdo deste artigo é parte de um dos capítulos da tese "Escrevendo a lápis de cor: Infância e História na escritura de Guimarães Rosa", que desenvolvo na área de História Cultural e devo defender ainda no primeiro semestre de 2014, na USP.

Grata pela atenção
Camila Rodrigues

sexta-feira, 18 de abril de 2014

"Do amor e outros demônios", de Gabriel Garcia Marquez


Em relação aos romances do Gabo, em homenagem póstuma,  lembrei de "Cem anos de solidão" e do meu favorito "O Amor nos tempos do cólera", mas este último também está vinculado ao primeiro do Gabo que eu li quando foi lançado no Brasil em 1994 e foi com ele que eu conheci o Gabo. Trata-se de romance menos citado, porém deveras interessante  (especialmente aos historiadores que leram as obras da Laura de Mello e Sousa sobre as feiticeiras das Minas Gerais coloniais), porque a ideia nasceu nos anos 1940, quando o jornalista Gabo acompanhou a remoção das criptas funerárias de uma capela e viu o impressionante túmulo de uma marquesinha com uma cabeleira imensa, como a das personages das histórias tradicionais da América Central...  falo de "Do Amor e outros demônios", que conta a história de amor colonial, bastante histórica, em que uma marquesinha, que diziam ser possuída  por demônios, envolve-se com o padre espanhol  Cayetano Delaura, encarregado de exorcizá-la. Mas tem que ler a narrativa inventada por Gabo, vai ver que ela, embora fosse  marquesa, era uma criança rejeitada e  teve criação entre os escravos (culturas diferentes) e até de raiva sofreu (talvez por isso as febre intensas)... uma narrativa absurdamente  histórica e antropológica, muito interessante. Porém, a história de amor que eu mais gosto neste romance nem é essa da Sirva Maria de La Sierra e seu exorcista, mas uma ocorrida bem antes de seu nascimento, quando o seu pai, o segundo Marquês D. Ynácio de Alfaro y Dueñas - que foi analfabeto até a idade adulta e era anti social-, aos vinte anos se apaixona por uma das reclusas da Divina Pastoral

 "cujos cantos e gritos arrulharam sua infância. Chamava-se Dulce Olivia. Era filha única numa família  de seleiros de reis, e tivera de aprender a arte de fazer arreios de montaria para que não se extinguisse com ela uma tradição de quase dois séculos. A essa rara intromissão num oficio de homens se  atribuiu o ter ela perdido o juízo, e de tão triste modo que deu trabalho ensiná-la a não comer suas próprias misérias. Afora isso, teria sido  excelente  partido para um marquês crioulo de tão parcas luzes.
Dulce Olivia tinha uma inteligência viva e um bom caráter, de sorte que foi difícil descobrir que estava louca. Logo à primeira vez que a viu, o jovem Ynácio a distinguiu no tumultodo terraço, e nesse mesmo dia se entenderam por sinais. Exímia no corte,  ela mandava mensagens em gaivotas de papel. E ele aprendeu a ler e escrever para se corresponder-se com ela, e assim principiou a paixão autêntica que ninguém quis entender. Escandalizado, o primeiro marqês determinou ao filho que fizesse um desmentido público.
-Não é verdade - replicou Ynácio-, como tenho licença dela para  pedi-la em casamento. - E ante ao argumento da loucura, replicou com o seu:
-Nenhum louco é louco para quem entende as razões dele." (54-5)

O casamento com Dulce não se efetivou e tempos  depois, por interesse de linhagem, Ynácio  acaba desposando D. Olalla de Mendonza - a que tinha sido aluna de Scarlatti Domenico (o  mesmo músico citado no  Memorial do Convento, de Saramago)- e ela, pacientemente o introduziu ao universo musical debaixo das laranjeiras, então em um 9 de novembro

 "o ar era puro e o céu alto, e sem nuvens, quando um relâmpago os cegou, um estampido sísmico os fez estremecer e dona Olalla caiu fulminada pela centelha.
A cidade estupefata interpretou a tragédia como a deflagração da cólera divina por alguma falta inconfessável. O marquês encomendou um enterro de rainha, no qual se mostrou pela primeira vez com tafetás negros e a cor macilenta que havia de carregar consigo para sempre. Ao voltar do cemitério, foi surpreendido por uma  nevada de gaivotas de papel sobre as laranjeiras. Apanhou uma ao acaso e, desfazendo-a, leu: 'Esse raio era meu'." (58-9)

Gabriel Garcia Marquez. Do amor e outros Demônios. 8a. ed. RJ: Record,  1995.

O Amor nos tempos do cólera, de Gabriel Garcia Márquez


Gosto de Cem anos de solidão, claro, mas nunca pude negar que meu favorito sempre foi o livro O Amor nos tempos do cólera... muito porque concordo com o que diz Alexandre Martins, na orelha do livro:

"Acima de tudo, está uma belíssima história de amor, daquelas pontuadas por cartas perfumadas, pétalas de flores prensadas entre as folhas. A história do breve encontro entre Florentino Ariza e Fermina Daza, interrompido pelo casamento de Fermina e Juvenal Urbino, o ilustre médico que conseguiu vencer a epidemia de cólera. A história do amor obstinado de Florentino que espera Fermina por mais de 50 anos e se declara a ela no velório do marido.Meio século sozinho, sem deixar de pensar na amada um único instante.

'O Amor nos tempos do cólera' não é apenas uma simples história, mas um grande tratado nunca escrito por Florentino Ariza, que guardava em três mil modelos de cartas para namorados, nos quais estavam todas as possibilidades do amor. O amor apaixonado da adolescência, o amor conjugal, o clandestino, o tímido, o amor sexual ou libertino. O tédio do amor, suas lutas, esquecimentos, metamorfoses, suas deslealdades e doenças, triunfos, angústias e prazeres. O amor por carta, o despertar desse amor, próximo ou distante, o amor louco. O amor de meio século, que encontra os amantes septuagenários se tocando pela primeira vez. O amor que se guarda e espera, enfim, sua realização."

Por essas e por outras coisas que (re)li mil vezes este livro, que só agora fiquei sabendo que também era o favorito do Gabo, e nunca nem pensei em assistir ao filme ...estamos falando de amor, de cartas, de romance, essas coisas tão antiquadas, mas insubstituíveis 

quinta-feira, 17 de abril de 2014

Em memória de Gabriel Garcia Márquez (Gabo)

No foi no dia 17 de abril de 2014 que, aos 87 anos o grande escritor, vencedor do prêmio Nobel de literatura de 1982 pelo conjunto de sua obra, que encheu a América Latina e o mundo de um realismo fantástico! Eu fui muito leitora do Gabo durante toda a vida... especialmente quando estudei os primeiros romances do José Saramago dos anos 1980, que foram diretamente influenciado pelo clima realista mágico do Colombiano:


É assim que vamos contando nossa "história literária" e a minha tem estes nomes em destaque, por isso também que me emocionei de verdade, por gratidão, por saudade antecipada, ao  saber da morte do Gabo... foi o fim de um período de referências fortes  para mim também.Para um "grand finale" eu voltei a me emocionar, como na primeira vez que li ha tantos anos,  o Clássico "Cem anos de Solidão"


diretamente de Macondo, o imenso parágrafo final voltou a me causar arrepios, são assim os grandes livros, é assim a vida, aquela que o próprio Gabo chegou a dizer que  se vive para contá-la, e ele contou lindamente: 

"Em nenhum ato da sua vida Aureliano tinha sido mais lúcido do que quando esqueceu os seus mortos e a dor dos seus mortos e tornou a pregar as portas e as janelas com as cruzes de Fernanda, para não se deixar perturbar por nenhuma tentação do mundo, porque agora sabia que nos pergaminhos de Melquíades estava escrito o seu destino. Encontrou-os intactos, entre as plantas pré-históricas e os charcos fumegantes e os insetos luminosos que tinham desterrado do quarto qualquer vestígio da passagem dos homens pela terra, e não teve serenidade de levá-los para a luz, mas ali mesmo, de pé sem a menor dificuldade, como se estivessem escritos em castelhano sob o brilho deslumbrante do meio-dia, começou a decifrá-los em voz alta. Era a história da família, escrita por Melquíades inclusive nos detalhes mais triviais, com cem anos de antecipação. Redigira-a em sânscrito, que era sua língua materna, e cifrara os versos pares com o código privado do imperador Augusto e os impares com os códigos militares lacedemônios. A proteção final que Aureliano começava a vislumbrar quando se deixou confundir pelo amor de Amaranta Úrsula, radicava em Melquíades ter ordenado os fatos no tempo convencional dos homens, mas concentrando tudo em um século de episódios cotidianos, de modo que todos coexistiram num mesmo instante. Fascinado pela descoberta, Aureliano leu em voz alta, sem saltos, as encíclicas cantadas que o próprio Mélquíades fizera Arcádio escutar e que, na realidade, eram as predições da sua execução, e encontrou anunciado o nascimento da mulher mais bela do mundo que estava subindo ao céu de corpo e alma, e conheceu a origem de dois gêmeos póstumos que renunciavam a decifrar os pergaminhos, não só por incapacidade e inconstância, mas por que suas tentativas eram prematuras. Nesse ponto, impaciente por conhecer a sua própria origem, Aureliano deu um salto. Então começou o vento, fraco, incipiente, cheio de vozes do passado, de murmúrios de gerânios antigos, de suspiros de desenganos anteriores às nostalgias mais persistentes. Não o percebeu porque naquele momento estava descobrindo os primeiros indícios do seu ser, num avô concupiscente que deixava arrastar pela frivolidade através de um ermo alucinado, em busca de uma mulher formosa a quem não faria feliz. Aureliano o reconheceu, perseguiu os caminhos ocultos da sua descendência e encontrou o instante da sua própria concepção entre os escorpiões e as borboletas amarelas de um banheiro crepuscular, onde um operário saciava a sua luxúria com uma mulher que se entregava a ele por rebeldia. Estava tão absorto que também não sentiu a segunda arremetida do vento, cuja potência ciclônica arrancou das dobradiças as portas e as janelas, esfarelou o teto da galeria oriental e desprendeu os cimentos. Só então descobriu que Amaranta Úrsula não era sua irmã, mas sua tia, e que Francis Drake tinha assaltado o Rio-hancha só para que eles pudessem se perseguir pelos labirintos mais intricados do sangue, até engendrar o animal mitológico que haveria de por fim à estirpe. Macondo já era um pavoroso rodamoinho de poeira e escombros, centrifugado pela cólera do furacão bíblico, quando Aureliano pulou onze páginas para não perder tempo com fatos conhecidos demais e começou a decifrar o instante que estava vivendo, decifrando-o à medida que vivia, profetizando-se a si mesmo no ato de decifrar a última página dos pergaminhos, como se estivesse vendo a si mesmo num espelho falado. Então deu outro salto para se antecipar às predições e averiguar a data e as circunstâncias de sua morte. Entretanto, antes de chegar ao verso final já tinha compreendido que não sairia nunca daquele quarto, pois estava previsto que a cidade dos espelhos (ou das miragens) seria arrasada pelo vento e desterrada da memória dos homens no instante em que Aureliano Babilônia acabasse de decifrar os pergaminhos e que tudo o que estava escrito neles era irrepetível desde sempre e por todo o sempre, porque as estipes condenadas a cem anos de solidão não tinham uma segunda oportunidade sobre a terra."
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MÁRQUEZ, Gabriel García [Tradução de Eliane Zagury]. Cem anos de solidão. 58ª Ed. Record, Rio de Janeiro, 2005.


sexta-feira, 4 de abril de 2014

mais Antropologia da Criança

"E entender que ), onde quer que esteja, a criança ela interage ativamente com os adultos e as outras crianças, com o mundo, sendo importante na consolidação de papéis que assume e de suas relações. (...) a criança não é apenas alocada em um sistema de relações sociais dentre aquelas que o sistema lhe abre e possibilita. P. 28(...) e não são apenas produzidas pelas culturas mas também produtoras de cultura e tem autonomia cultural em relação aos adultos. Esta autonomia deve ser reconhecida, mas também relativizada: digamos, portanto, que ela têm relativa autonomia cultural. Os sentidos que elaboram partem de um sistema simbólico compartilhado com os adultos. Negá-lo seria ir de um extremo a outro; seria afirmar a particularidade da experiência infantil sob o custo de cunhar uma nova, e dessa vez irredutível, cisão entre os mundos. Seria tornar esses mundos incomunicáveis. P. 35 "
Clarice Cohn - Antropologia da Criança