sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

“A Cidade Ilhada”: o rio de histórias de Milton Hatoum

 

 


 Se para o escritor o melhor prêmio é o leitor, como sugeriu o premiado Milton Hatoum numa live no Instagram nesta semana, eu sou um prêmio agridoce para ele, porque eu leio tudo o que chega até mim, sou leitora assídua e voraz, mas uma leitora bem chata, fico brigando com os livros, vendo cabelo em ovo, aprofundando a relação... Mas sempre leio, porque eu adoro a escrita dele, até por isso mesmo que eu olho tão criticamente. Logo no começo eu reclamei que a edição não trazia informações sobre quando os contos foram escritos, mal sabia eu que o próprio autor explica em detalhes num posfácio que eu mal tinha reparado! A chata!

                Leitura do segundo semestre de 2020, “A cidade ilhada” foi um livro difícil de ler, primeiro porque demorou um pouco para chegar, coisas da pandemia, depois me pegou  bastante  ocupada  em meados de setembro, eu tendo que preparar aulas, textos, acompanhar a Mostra de Cinemas, mil coisas e acabou que eu poucas vezes me sentei para ler o livro, como gosto sempre de fazer. Fui lendo os contos bem aos poucos, quando dava, porque não gosto de ler superficialmente, isso nunca. Não com Hatoum.

                Aqui farei um breve ou brevíssimo comentário sobre cada um dos contos do volume.

Varandas  da  Eva –Abre o volume e é o conto mais comentado por todo mundo, conta uma história envolvendo  iniciação sexual junto a profissionais em Manaus,  daquele jeitinho hatuano de escrever. Não me chamou a atenção, exceto pelo aparecimento do Tio Ranulfo, personagem de “Cinzas do Norte”, romance muito citado na contracapa do livro.
Uma estrangeira na nossa rua -  Continho bem pueril, agradável . Até demais? Me lembrou muito alguma coisa de W. G. Sebald, coisas soterradas pelo tempo podem emergir, não importa o tempo que passe.
Uma carta de  Bancroft -  O conto fala sobre um narrador  que se dirige a biblioteca de Berkeley para ler uma carta inédita de Euclides da Cunha que nunca foi encontrada na correspondência de Euclides. Seria real, ou não? Logo no início uma personagem sinoamericana chega a comentar que para seus antepassados (sua cultura) “a realidade não tinha a menor obrigação de ser interessante” (p.23). A ficção sim, ou também não? Não vou falar mais detalhes, mas o conto aprofunda esse jogo de forma excelente, na minha opinião. Adorei!

Um oriental na vastidão Aqui temos uma narradora, como em “Relato de um certo oriente” e o centro da trama está em um pesquisador japonês que viaja a Manaus para viajar pelo Rio Negro por um motivo que só lendo pra saber. É um dos textos mais bonitos do livro, muito bem escrito, com trechos de tirar o fôlego, para contemplarmos aquelas palavras como o japonês contempla o Rio manuara  como por exemplo : "logo depois, o céu silenciou. E o silêncio subtraiu a noção de tempo. (...) Não havia mais claridade, e a superfície escura do remanso alcançava o céu." (p. 34-5)

Dois poetas da provínciaUm conto de culto à memória intelectual de certas gerações manauaras  através de dois poetas, um jovem e um velho e suas relações reais ou rememoradas  com Paris. Me lembrou o tom, o cilma de alguns momentos do romance  “Dois irmãos” e, claro, de “Cinzas do Norte”, como se fosse mais um exercício num possível laboratório de composição ficcional do universo do autor. Eu viajo.

O adeus ao comandanteAh, um conto muito do jeito que eu gosto, mais uma história um tanto fantástica (apenas o suficiente) que se passa em Manaus, uma história oral, uma narrativa propriamente dita. É importante destacar isso, pois ela se apresenta exatamente assim, quando o velho caixeiro viajante Moamede  chega de mais uma viagem, encontra os jovens reunidos a espera da transmissão da TV e propõe contar uma história incrível, envolvendo o barco Princesa Anaíra,do seu amigo comandante  Dalberto, dos rios, e um caixão, etc. Que conto fabuloso! Me lembrou de muito aquelas narrativas sensacionais da literatura universal presente em antologias de contos universais como nos volumes de  “Mar de histórias.” Palmas para esse conto, escrito por um grande escritor e a procura de um bom leitor.  

 Manaus, Bombaim, Palo Alto  – Um escritor residente em Manaus (alter ego de Hatoum?) recebe o comunicado de que um almirante da marinha indiana (mais um oriental) decidiu conhecer seu escritório, todo deteriorado, sem condições de receber uma visita. Mas acaba recebendo e eles então cotejam as realidades de relação com a linguagem das inúmeras línguas faladas na Índia que foram trocadas pelo inglês colonizador e  as várias línguas amazônicas  que deram lugar ao português. Tem trechos notáveis como “muitos indianos de Madras e outras cidades do Sul se sentem mais à vontade falando inglês do que em urdu. De todo modo, com ou sem computador, todo o subconsciente se comunica com os deuses. Até os navios da nossa marinha são batizados com nomes das divindades.”(p. 58) A questão da “aculturação” é muito mais complexa do que pode parecer, sempre há alguma resistência.

 Dois tempos– Novamente uma história do sobrinho do tio Ranulfo, o tio Ran, que volta à Manaus já adulto e se surpreende em encontrar a casa do tio fechada, pois ele estaria viajando, mas o garoto aproveita para relembrar suas vivências naquela cidade.  Com o retorno do tio, o sobrinho começa a fazer aulas de canto com a professora Aiana e essa relação domina o enredo.

A casa ilhada – Um conto muito misterioso, cheio de suspense e, novamente, uma personagem de fora, um estrangeiro, chega a Manaus buscando encontrar algo ou alguém. No caso é o pesquisador de peixes de água doce suíço Lavedan, que vem de Zurique, querendo conhecer a “casa ilhada”, de um postal que teria recebido, anos atrás. O conto é muito bem articulado, acho que o eixo para decifrá-lo (não que eu tenha decifrado, claro) esteja na imagem do peixe tralhoto,que  " com seus olhos divididos, vê ao mesmo tempo o nosso mundo e o outro: o aquático, o submerso", e com o qual, em um dos mais belos trechos do conto, o estrangeiro  vive um momento de plena cumplicidade :”os  olhos de Lavedan encontraram os do tralhoto, e ambos permaneceram assim: o peixe e o homem, quietos, encantados pelo magnetismo de tantos olhos voltados para dentro e para fora. Isso durou o tempo de um olhar demorado.”(p.70)

Bárbara no inverno – Digo de antemão: É certamente o conto que menos gostei do livro todo. Embora seja bem anterior, posso até situá-lo no universo de criação literária de Hatoum ali nos primeiros volumes da trilogia “O Lugar mais sombrio”: personagens brasileiros exilados em Paris e que, certa hora, retornam ao Brasil com suas questões afetivas, políticas ou existenciais à flor da pele. Inclusive no primeiro volume da trilogia temos um personagem chamado Lázaro, altamente politizado, como o namorado da Bárbara.  O tema não me agrada em nada e até canção do Chico Buarque tem, poxa vida (na trilogia as canções são menos obvias). Podemos passar para o próximo?

A  ninfa do teatro Amazonas  – Texto muito fantasioso que aborda a história do idoso segurança Álvaro e uma parturiente  que teria entrado no teatro e levado o senhor a rememorar a soprano Angiolina Zanuchi. Certamente precisaria reler com mais tempo, mas a sensação constante é a de que tudo se passa (ou não se passa) numa grande alucinação de Álvaro, algo bastante interessante para um conto.

 A natureza ri da cultura  – Esse conto eu situo perto do meu romance favorito, “Relato de certo oriente”,  especialmente  por ser narrado por uma mulher  (sem nome) e pela sua avó, a  matriarca Emilie que tem origem libanesa mas se interessa pela cultura francesa  e indica a sua neta aprender francês os nome de Amand Verne, um estudioso das línguas indígenas  e acreditava que a língua podia “preservar e promover” sua cultura, e o de Felix Delatour, que acreditava no contrário “não se pode dominar totalmente  um idioma estrangeiro, porque ninguém pode ser totalmente o outro. Um deslize no sotaque ou na entonação já marca uma distância entre os idiomas, essa distância é fundamental para manter o mistério da língua nativa . ”(p.97) A questão do deslocamento é abordada em várias frentes, tomando a língua como filtro  em frases como “A viagem, além de tornar o ser humano mais silencioso, depura o olhar”(p. 100). ”Novamente, como no conto sobre o idiano em Manaus, a grande questão se apresenta em torno das línguas e da identidade. Gostei muito, como sempre,  senti saudade de  Relato de certo oriente”.

Encontros na penísula  – Esse conto é divertido e um mergulho literário envolvendo Machado de Assis e Eça de Queiroz que acabam mudando e dando rumo às ações das personagens do conto, a espanhola Victoria, seu professor de português (alter ego de Hatoum?)que narra a história e o namorado português de Victória o Soares, o fanático por Eça de Queiroz. Uma história cheia de camadas, um conto fantástico!

Dançarinos na última noite  – A história desse conto segue ao redor do casal de dançarinos Miralvo e Porfíria que antes viviam em Manaus, mas tiveram que se mudar, o que os deixou sempre saudosos da terra natal. Não consegui alcançar o sentido desse conto, não o  achei lírico, nem fantástico, não entendi muito,mas...

 

Em geral gostei mais do livro nesse balanço rápido do que na própria leitura, em muitos momentos, foi muito bom revisitar esses textos de Hatoum que, tantas vezes, registram  de processos de composição do autor, algo que eu adoro perceber. Muitos contos são grandiosos, poderiam estar em uma grande antologia de contos universais só que  e como foi escrito por um manauara, minha ideia é ligs-los um  rio amazonense.

Parabéns e oxbrigada Hatoum, você me distraiu, me fez pensar e sentir várias coisas! Até uma próxima leitura.


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