quinta-feira, 17 de agosto de 2023

"Luanda, Lisboa, Paraíso", de Djaimilia Pereira de Almeida : o calcanhar de Aquiles da colonização portuguesa em Angola

Um grande presente!

Em 30 de maio, durante um show do Instrumental,  eu  ganhei da amiga Katia o tão desejado  romance "Luanda, Lisboa, Paraíso" (2018), de Djaimilia Pereira de Almeida, mas só fui ler agora em agosto, com mais tempo para poder mergulhar na leitura mesmo
Foi uma surpresa tão enorme! Depois de tanto cobiçar
 e reclamar que não leria ,ganhei esse presente e
AMEI num tanto que vocês nem imaginam!


Da mesma autora eu já tinha lido, há pouco mais de um ano e comentado aqui  o maravilhoso "A visão das plantas" (2019), que li em meio a um processo de cura para um coração partido. Com o passar do tempo foi ficando um livro maior e maior, a escrita movediça e poética de Djaimilia (adoro esse nome) me emocionava muito e muito. Achei que a leitura de "Lisboa...", que é maior, ia demorar mais, talvez até o final do ano, mas não ,nesse romance a autora continua poética dando às palavras o valor que merecem, mas escreve de outro jeito.

Lisboa... é um livro premiado, ganhou o Prêmio Oceanos de 2019 e é um romance dos grandes, contando a história de pessoas em constante movimento, é um romance fragmentado como os bons contemporâneos, cheio de telefonemas, cartas, espaços vazios para contar uma história sobre o calcanhar de Aquiles da relação entre Angola e Portugal, ou melhor, entre os angolanos e a Europa, como na própria biografia da autora. Fazia tanto tempo que eu não lia um ROMANCE assim, sem pontas soltas, referências literárias mil, um gosto agridoce na boca todo o tempo. Que experiência essa leitura, meu amigos!

Contando a história da família angolana Cartola de Souza, composta pelo pai Cartola, um parteiro conhecido na cidade, a mãe Glória, e os filhos Justina e Aquiles, eles vivem a tensão familiar entre amor e ódio o tempo todo, porque caem doentes e acabam tendo que se tornar cuidadores uns dos outros. Primeiro Glória fica paralisada na cama após o parto do filho mais novo, que, por ter nascido com um calcanhar malformado 
"o pai deu-lhe o nome helênico Aquiles, tentando resolver o destino pela tradição: ' Vale mais  nascer grego em terra de troianos do que nascer gazela em terra de leões" (p.9)

Mas para tentar resolver o problema no calcanhar de Aquiles, ele deveria passar por cirurgias na Europa até seus 15 anos e assim foram ele e o pai tentar a vida em Lisboa, a "cidade do progresso", onde viveram toda sorte de inadaptação e preconceito possíveis e imagináveis. O livro é sobre essa viagem e como a família foi se comunicando (ou tentando se comunicar). Justina, a justiça,  a filha mais velha, apesar de ser mãe solteira da pequena Neuza, abdicou da vida para cuidar da mãe Glória em meio a miséria e a Guerra Civil angolana pós-independência de Portugal.

No começo Cartola e Aquiles viveram em uma pensão barata, enquanto o dinheiro deu, depois tiveram que se mudar para um local periférico, a tal Quinta do Paraíso, onde conhecem novos personagens e criam nova "família": o quitandeiro Pepe, seu filho Amândio, seu cachorro Tristão e também Iuri, um garoto loiro que era a criança da "família".  

a capa original portuguesa e a bela autora

UMA AUTORA PORTUGUESA QUE NASCEU EM ANGOLA Lembrando quem é a autora Djaimilia, essa linda mulher na casa dos quarenta anos, percebo como esse livro trata de questões dela, importantes para ela. No seu primeiro livro que li, o das Plantas, ela é apresentada apenas como uma autora que nasceu em Angola. Nesse livro ela aparece como autora portuguesa. É tudo verdade, ela nasceu em Angola, é angolana, mas estudou em Lisboa e escreve como uma portuguesa. Sabe aquele português de palavras cheias e bonitas de um Eça de Queiroz? Gostoso como se tivesse nos contando oralmente? Essa é a escrita de Djaimilia. No entanto seus temas são, quase sempre, os das narrativas pós-coloniais - um dos desafios do século XXI para a escrita da História -, das quais nos falavam autores como Homi K. Bhabha e ela, por si só, é um fruto desse processo. 

Como no livro as referências mitológicas pipocam (calcanhar de Aquiles, o cavalheiro Tristão, etc), cabe sublinhar que em seu  Dicionário de Mitos Literários (1997), Pierre Brunel, a autora do vebete "mitos africanos" Nicole Goisbeault comenta que os modernos escritores da África negra no século XX, ao se referirem a tradição mítica africana, não raramente criam histórias iniciáticas (míticas), sobre viagens ao ocidente. Citando Goisbeault, entre 1953 e 1968 numerosos "romances de formação" têm como problemática a transformação da África posta em contato com os valores tradicionais (vide, entre outros, o romance "Hibisco Roxo", de Chimamanda Ngozi Afichie, que comento aqui),  pelo expediente de uma viagem à Europa ou de uma mudança da aldeia para a cidade. A busca do herói é a do saber penetrar nos segredos do Ocidente indo até lá em busca da prosperidade ou do modernismo, motivado pela curiosidade, ambição e sobretudo pelo fascínio do "mito" de um Europa sábia, rica e feliz, onde tudo parece fácil (sobre isso veja " Pele negra, máscaras brancas", de  Frantz Fanon) . As viagens através dos continentes  descritas retomam o tema do encontro de iniciadores ou mediadores, mas as provas vividas revelam-se frequentemente intransponíveis e a  experiência é mais de desilusão ou fracasso doloroso do que de êxito. Em um mundo estranho, o itinerário  se assemelha a uma iniciação fracassada. O choque de culturas dá lugar à expressão de um sentimento trágico. Esse é o cenário deste  romance!

IDENTIFICAÇÃO COM AS MULHERES 

De alguma forma eu me identifiquei um pouco com as duas mulheres do romance, tanto Glória, sempre corajosa  e esperançosa,a rainha que, em meio à guerra, permanece presa em seu quarto/torre, que recebe promessas de presentes e alegrias de seu "varão" no tão distante universo ocidental.

No romance temos transcrições de telefonemas como esse,onde Glória mostra a Cartola que, apesar da guerra, apesar de tudo, nunca perdeu as esperanças de terminarem juntos novamente 

(P. 157)

Eu já conheci africanos casados em África que, no Brasil, ainda se esforçavam para tentar mandar o melhor à familia tão sonhada e idealizada na África. Talvez sem tantas perspectivas de que fossem se reencontrar novamente, como Cartola.

Nesse momento da minha vida pós pandemia, quando tudo parece ter desmoronado, sobramos eu e minha mãe, essa é minha vida, só que eu, ao contrário de Justina, não amei o cuidado a ponto de encontrar nele um significado para minha vida abortada e o  abandono dos meus sonhos. É tudo sempre tão difícil! Como foi difícil ler esse trechinho:



Bom, acho que escrevi demais... agora termino com algumas postagens de leitura:












Já faz tempo que terminei de ler.
Desde então o livro está sempre comigo
Na cabeceira, na bolsa, na lembrança.
Essa foto, espero, é o última registro dessa primeira leitura. Obrigada Djaimilia.


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