terça-feira, 5 de junho de 2012

Um Caminho feito para não haver chão - Mia Couto


Entre o autor e o seu texto existem caminhos, existem tempos. O caminho que separava  Rosa do texto rosiano foi o  da poesia. Os tempos foram os do Sertão. João Guimarães Rosa trilhou o caminho da poesia para poder sair de todos os existentes  caminhos. Os tempos do sertão fizeram com que ele escapasse do tempo. Porque esse sertão, construído com poesia, não era da ordem da geografia.

Cada escritor procura, nessa ausência de lugar, o seu universo único. Essa procura faz-se para além daquilo que ele próprio pode entender. Porque essa criação se furta ao território da racionalidade. A maior parte das vezes, os escritores escrevem exatamente  porque não sabem. E quando sabem eles escrevem para deixarem de saber.

Certa vez, José Saramago me confessou que, já depois de muito livro escrito, ele se encontrou numa espécie de encruzilhada existencial no que respeita à adoção de um estilo que, sendo inovador,   fosse a marca da sua individualidade. Para definir essa hesitação, Saramago fez uso do célebre verso drummondiano ‘e agora José?’. Por muito que explicasse Saramago sabia que não dava nenhuma explicação. Na verdade, o modo de operar de cada escritor pertence ao domínio que está para além daquilo que ele pode racionalizar.

Tal como acontece com Rosa, não parece haver nos primeiros textos de Saramago algo que faça adivinhar o estilo já maduro e que, depois, ficou consagrado como marca pessoal do autor. E, no entanto, já há qualquer coisa nas primeiras criações que indiciam uma inquietação, e atuam como a forja do que seria não exatamente em ‘estilo’ mas um idioma particular. O edifício que daí resulta é uma escrita que se deixa apropriar pela oralidade, uma escrita plural que se deixa inundar pela Vida. Uma escrita que não pode ser apenas lida. Mas precisa ser escrutada. Porque ela é feita de vozes, de margens, de veredas.

Um dos segredos da maturação de Rosa está no quanto ele tornou a página permeável a falas e sotaques que não são exatamente apenas do Brasil, mas surgem como um Brasil pessoal, o Brasil de Rosa, uma nação encantada que só pode ser dita por palavra que por inventar.

A viagem que, após a sua chegada de Paris, Rosa empreende pelos sertões de Mina Gerais é, afinal, uma deslocação interior, um revoltear do seu chão mais íntimo. Terá sido aí que Rosa descobriu a sua linguagem causadora, a um tempo, de proximidade e estranhamente? Não sei. Duvido. Porque em todo escritor há um percurso lento e cego que não se tanto de revelações como de esquecimentos. É verdade que o próprio JGR defende que a inspiração  é uma espécie de transe. Mas esse transe serve mais para calar e ocultar o que é certo e sabido.

Rosa não escreveu sobre o universo sertanejo. Ele inventou esse universo. E usou essa invenção contra aquilo que ele sentia como ameaça: a invasão de um território uniformizado, modernizado, à custa da anulação do espaço mítico. Onde o mundo sugere a diluição de afetos o escritor propõe um clã, onde a modernidade impõe a uniformidade, o escritor contrapõe a soberania da intimidade. Onde  os novos tempos sugerem uma aldeia global, o escritor ergue uma casa, uma residência  para a alma, uma raiz para a individualidade.

  Mia Couto

(texto de apresentação do livro “Antes das Primeiras Estórias”, de João Guimarães Rosa)

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