quinta-feira, 12 de julho de 2012

História e ficção na literatura portuguesa



"Como a ficção de Saramago e em particular a que o celebrizou tem como quadro o passado, longíquo, próximo ou mítico, uma certa crítica incluiu-a dentro da categoria do 'romance histórico' de romântica memória ou no círculo de um revivalismo, hoje muito comum, dessa famosa corrente. A inscrição do seu imaginário no 'passado' não é um simples caprichoou uma característica sem significado na sua ficção. Assinala-a logo como 'não realista', mas de uma maneira diferente da do romance histórico para quem 'o passado' deveria ser evocado como presente no Passado. A óptica de Saramago é inversa : é o Passado que é Presente. Mesmo quando retoma as cores de "romance histórico", como no Memorial (do Convento), a sua ficção é sempre em segundo grau, o de uma narrativa sobre a História, não uma fictícia ressureição dela (...) A sua ficção nasce de um propósito de reescrever uma história que já está escrita, e que como tal se vive ou é vivida enquanto 'verdade' de uma época ou de um mundo, ou da humanidade quando ela é a sua ficção não inocente. A realidade - no passado ou no presente - não é nunca acessível na sua opacidade ou transcendência, é sempre e já uma narrativa e é essa narrativa que devemos revisitar, recriar para ter acesso birtual ao "eterno presente" do sentido dela para nós, o centro fora do tempo onde tudo conflui, de onde tudo reflui. Só que tal centro não é um lugar, nem uma substâcia, realidade que possa ser circunscrita de uma vez por todas, mas a própria invenção dela, o seu sonho, em suma, a sua ficção. Como os peixes do Lago de Tiberíades esperam que o homem chamado Jesus lance sua rede, como só ele a podia lançar, a realidade, a do mundo da experiência comum ou da História, espera que o olhar que a ficciona repare nela para que o milagre de uma outra pesca que nos torna criadores aconteça. (...) dela O fim da sua (de Saramago) ficção, o fim de toda ficção é voar, elevar-se sobrevoando, não céus inexistentes nem realidades mágicas, mas descolar da sua própria realidade humana, pesada, obscura, opaca para ver melhor ou de outra maneira a luz que ela oculta, a claridade original de cada ser humano ofuscada pelo peso do mundo que pode ser apenas o de nossa própria treva. Dessa poética - que é o eco natural da poesia que em nós habita -se encontra no Memorial (do Convento) a expressão ficcional, mas também artesanal, aquela que na arte de Scarlatti e na de Bartolomeu Lourenço se configuram. Duas faces do mesmo milagre da criação, uma como se nem o criador necessitasse como o da música e outra verbo a música - e às vezes mais - terá condão de nos restituir à nossa condição natural de seres destinados a voar, quer dizer, a escapar ao tempo e à morte. (Saramago um teólogo no fio da navalha. In: O Canto do Signo - existência e literatura 1957 1993). p. 186-7)

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