“Benjamin não
ressalta a ingenuidade ou inocência infantis, mas, sim, a inabilidade, a
desorientação, a falta de desenvoltura das crianças em oposição à “segurança”
dos adultos. Mas essa incapacidade infantil é preciosa: não porque ela nos
permite lançar um olhar retrospectivo comovido e cheio de benevolência sobre os
coitadinhos que fomos, ou que nos cercam hoje. Mas porque contém a experiência
preciosa e essencial ao homem do seu desajustamento em relação ao mundo, da sua
insegurança primeira, enfim, da sua não-soberania. Essa fraqueza infantil
também aponta para verdades que os adultos não querem mais ouvir: verdade
política da presença constante dos pequenos e dos humilhados que a criança
percebe, simplesmente porque ela mesma, sendo pequena, tem outro campo de
percepção; ela vê aquilo que o adulto não vê mais, os pobres que moram nos
porões cujas janelas beiram as calçadas, ou as figuras menores na base das
estátuas erigidas para os vencedores. A incapacidade infantil de entender
direito certas palavras, ou de manusear
direito certos objetos também recorda que, fundamentalmente, nem os objetos nem
as palavras estão aí somente à
disposição para nos obedecer, mas que nos escapam, nos questionam, podem ser
outra coisa que nossos instrumentos dóceis.
As imagens da
infância evocadas por Benjamin tentam pensar aquilo que, profundamente, jaz
neste prefixo in – da palavra
infância. O que significa para o pensamento humano essa ausência originária e
universal de linguagem, de palavras, de razão, esses logos que não é nem silêncio inefável, nem mutismo consciente, mas
desnudamento e miséria no limiar da
existência e da fala? Retomando essa
questão, Giorgio Agamben nos indica que essa experiência inefável da in-fância –
inefável não porque seria um início paradisíaco além das palavras, mas porque
in-fância está aquém das palavras, ao mesmo tempo sem palavras, sem linguagem
e, porém, condição de possibilidade de sua eclosão –, que essa experiência da
infância ‘exclui que a linguagem possa se apresentar como totalidade e verdade’.
Nem no domínio do pecado nem jardim do paraíso, a infância habita muito mais,
como seu limite interior e fundador, nossa linguagem e nossa razão humanas. Ela
é o signo sempre presente de que a humanidade do homem não repousa somente
sobre sua força e seu poder, mas também, de maneira mais secreta, mas tão essencial, sobre suas faltas e suas
fraquezas, sobre esse vazio que nossas palavras, tais como fios num motivo de
renda, não deveriam encobrir, mas sim, muito mais, acolher e bordar. É porque a
in-fância não é a humanidade completa e acabada, é porque a infância é, como
diz Lyotard, in-humana, que talvez, ela nos indique o que há de mais verdadeiro
no pensamento humano: a saber, sua
incompletude, isto é, também, a invenção do possível.”
Jeanne Marie Gagnebin. Infância e Pensamento.
In : 7 aulas sobre linguagem, memória e história, p. 179-81.
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