sábado, 26 de junho de 2021

— Prince, sobre a mudança de seu nome para um símbolo impronunciável:

 


"A Warner Bros tornou o nome "Prince" uma marca registrada dela, e usou-o como uma ferramenta de marketing principal para promover todas as músicas que eu escrevi. A empresa possui o nome "Prince" e toda a música relacionada comercializada sob o "Prince". Assim, eu me tornei meramente uma peça de penhor utilizada para produzir mais e mais dinheiro para a Warner Bros... Eu nasci com o nome "Prince", e não quero adotar outro nome convencional. O único substituto aceitável para o meu nome e minha identidade, é um símbolo sem pronúncia, que é uma representação de mim, e de minha música. Este símbolo estará presente em meu trabalho ao longo dos anos; é um conceito que tem evoluído a partir de minha frustração; é quem eu sou. É o meu nome."

E ele estava errado? Eu não acho ...

quarta-feira, 23 de junho de 2021

"Bicho geográfico", de Bernardo Brayner: porque "a memória é um osso que se cava fundo"

 

Eu lendo Bicho Geográfico, de Bernardo Brayner


A citação no título da postagem é porque não posso e nem quero  falar desse livro sem recorrer à memória da história da nossa amizade de longa data! Conheci Bernardo Brayner pela internet há muitos anos. Não me lembro exatamente a  data, mas sei que foi no comecinho dos anos 2000 em uma troca de mensagens sobre os livros de Guimarães Rosa no site Submarino (que na época fazia muito sucesso, era como a  Amazon ). Eu não ia comprar nada porque já tinha, estava ali só para comentar sobre  “meu autor” e encontrei  Bernardo com o mesmo objetivo, ficamos muito amigos. Meu interlocutor sobre literatura e assuntos literários de sempre, de lá de Pernambuco.

Já entrando em um tema caro a "Bicho Geográfico",  foi Be quem me presenteou com  “Ooó do vovô”,  que eu estudei anos no mestrado e doutorado, trabalhei com tantas crianças desde então, foi presente dele, por isso nos agradecimentos ele sempre aparece como o amigo que Rosa me apresentou.

Dedicatória de Ooó, do Rosa

Comentando esta dedicatória, que sempre me deixa de coração grande, cheio de carinho, observo: Ele havia comprado o livro em janeiro de 2004, mas em fevereiro de 2004 me presenteou com ele porque, era tão "a minha cara" que ele só podia ser um intermediador para ele chegar até mim. E não estava errado!

Como sabemos, o tempo e a vida corrida pode até nos afastar das pessoas, até de um “amigo de infância” (amizade de tantos anos, pra mim, é desde a infância!) como o Bernardo, mas nunca deixamos de olhar um para o outro, mesmo de longe. Só que o Bernardo não era apenas um simples leitor como eu, era também um escritor e me presenteou com seu primeiro livro, “Exercícios de morrer” (2005),tenho então dois exemplares dele em minha biblioteca

Minha biblioteca de Bernardo Brayner

Na época do boom dos blogs, quando criei esse aqui, que hoje já é vintage, eu  lia até que com alguma frequência o seu “Livros que você precisa ler”, algo muito interessante , sobre todos os livros que nunca foram escritos, mas existiam na sua fértil imaginação e esse tema do imaginário bibliográfico também é central em "Bicho Geográfico".  Só que eu acabei deixando de  acompanhar o blog e  também sua obra literária, que agora vejo que cresceu bastante, tornou-se internacional. Não deve ter sido à toa que agora, em plena quarentena,eu venha  resgatar o laço com a obra do Bernardo,  no momento em que ele publica seu mais recente livro e ter o prazer de voltar a ler seu texto. 

Porque consegui pegar uma promoção de lançamento da CEPE editora, meu volume veio autografado, como iria para para qualquer leitor, mas quando chegou e reconheci a letrinha do amigo, meu coração ficou quentinho, aquele autógrafo foi pra mim, é pra mim e quem justifica é a linda história da nossa amizade: 

autógrafo de "Bicho geográfico"

Vou fazer um primeiro comentário aleatório sobre o livro,a partir de todo esse contexto. Quando  Bicho geográfico” chegou eu fui ansiosa para ler, porque Bernando havia comentado em algum lugar, que não era propriamente nem poesia, nem prosa, e isso me lembrou Guimarães Rosa, claro. E tem mesmo um pouco de tudo. Bernardo, que já era um  grande leitor, melhor do que eu, admito (ele vem de uma família de leitores!) e se tornou, sobretudo, um grande escritor! Só podia, eu sabia que ia gostar. E gostei mesmo!

Li o livro de uma vez, me emocionando em tantas partes, porque é bonito, é poético! 

Em determinado momento ele escreve que  “não se deve contar nada a ninguém: as histórias são coices e desembestam”(p.46), e é verdade, pois então, quando, no livro,  Bernardo falando de alguns momentos marcantes da sua história, algumas perdas, algumas alegrias, tive um sentimento interessante, não que eu soubesse daqueles acontecimentos em específico, mas eu me lembro daquelas fases, dele me contado algo assim e assado, há tempos, mas nunca esqueci. Houve uma época, na nossa antiga juventude, que fomos  amigos confidentes! Uma época voraz: o começo da vida adulta, os medos, as dores .... eu lembro do clima, da sensação, eu tenho essa memória, ainda que coberta pelas neblinas do tempo!

O livro está mais para uma auto biografia de formação como leitor (estou inventando esse termo), onde, como disse,  ele narra fatos da infância, ou marcantes na vida mesmo, ilustrado por belas fotos de família,  antigas, coloridas, do menino Bernardo,com os irmãos, brincando, rindo, fantasiado: como se quisesse voltar ao passado, achar o momento chave, de quando ele começou a se tornar o que é agora. Em qual daqueles momentos de “prazer discreto” o autor guardou seu tesouro? Não se sabe... mas é possível, e necessário, lembrar de tudo, afinal ele está vivo e

“o essencial é a memória, visto que a literatura é feita de sonhos e sonhos recombinam recordações.”(p.22)

Mas nem sempre é fácil recordar, talvez seja preciso sempre desconfiar , como ele conta:

“Desconfio da religião, pois se pretende uma certeza que não cessa. Desconfio da história, pois se pretende uma memória que não se apaga. Desconfio da arte, pois se pretende uma história que nunca acaba” (p.81)

Sim, trata- de um livro sobre memória, esquecimento e acima de tudo, de livros, daí me parecer um relato de formação. Das brincadeiras, dos sonhos, da imaginação que colore ou apaga tudo.

Dedicatória para txai

No começo eu chamava o Be de meu Txai, que como está na música, é um termo indígena que mais que significa amigo/ mais que irmão, a metade de mim que existe em você/ e a metade de você que habita em mim, porque eu sentia mesmo uma ligação entre nós (amizade mesmo: metade longe, também sou eu)  e isso não veio do nada e não pode se acabar. 

Lendo o livro me permiti me imaginar perto de Bernardo novamente, como era na época da nossa infância no mundo dos leitores e  algumas vezes, senti que ele segurava minha mão quando eu me emocionei ao ler, em “Bicho geográfico”,  a história com Ozu : Eu e Bernardo temos muito mais em comum, como eu já pensei de cara, e isso é lindo.

Parabéns meu Txai, seu livro é lindo, seu coração também e eu sou muito grata por poder te dizer isso nesta vida que  tantas vezes nessa  tão difícil! 

Peço licença para me despedir, já me emocionei aqui...

Pra terminar, para os leitores do blog, leio um trechinho interessante, amantes de livros como nós, vão gostar:


sexta-feira, 18 de junho de 2021

O passado movente em "As reputações" de Juan Gabriel Vásquez

 No Brasil o romance “As reputações”(2013) do escritor colombiano Juan Gabriel Vásquez foi traduzido por Joana Angélica d’Ávila Melo e publicado em uma belíssima edição Bertrand Brasil em 2016:

capa Angelo Allevato Bottino, mostrando um busto na ponta de um lápis grafite.

Depois de uma entrada no mundo do Gabo, queria conhecer mais da literatura colombiana além dele, além do Nobel, o que se está escrevendo na Colômbia no século XXI. Ai peguei essa indicação de Rodrigo Vilela, do Canal ler para viver e, pela sinopse me atraiu.

O livro tem 140 páginas com uma narrativa dividida em três partes, com uma reviravoltinha em cada uma delas. Narra a história do cartunista Javier Mallarino, famoso pelos “comentários” políticos no maior jornal da Colômbia e que por sua atividade crítica tão importante, chegou a receber muitas ameaças para si, sua esposa Magdalena e sua filha Beatriz, o que acabou obrigando-o a se separar e morar só nas montanhas, perto do Páramo ( o real, geográfico), vivendo como um eremita.

O livro começa com uma homenagem que ele recebe, pelos 40 anos de serviços prestados nos jornais e nessa ocasião, uma mulher de 35 anos, Samantha Leal,que ele não sabia, mas já havia encontrado há 28 anos e chega para lhe revelar um fato muito importante para as mulheres latino americanas, que pode vir a mexer com toda sua vida, memória e reputação.

Como tenho gostado muito dos últimos livros que li recentemente, a expectativa com esse não era pequena, achei que ia quebrar o clima mórbido das duas últimas leituras (pesou muito no meu espírito todo aquele luto e morte de O avesso da pele e Pedro Páramo), afinal o livro é recomentado por um grande autor latino americano, o Mario Vargas Lhosa, esperava algo meio clássico , esperava muito e a queda foi dolorosa porque a leitura não fluiu. Não que seja mal escrito, nem nada, ou que seja um livro cômico, mas o ritmo é leve demais, não sei. Me me lembrou muito algumas anedotas que lia quando pesquisava humor no pós-doc e descobri que talvez eu nem tenha tanto senso de humor assim.

O fato é que eu demorei muito para ler esse livrinho, tinha muita vontade de fechar o volume logo, talvez porque o narrador, em terceira pessoa, dá muitas voltas em todos os temas, talvez para nos apresentar melhor Javier Mallarino, o que ele fazia e pensava, mas como fazia isso sempre, foi ficando muito enfadonho. Todas as noites olhava para ele e ia fazer outra coisa, algum ranço louco, como se ele fosse mesmo muito ruim. Não é. Tudo bem que eu venho de obras maravilhosas, clássicos, mas isso não é motivo de eu realmente não querer ler esse livro, essa é a verdade. 

Tem uma citação atribuída ao Kafka que eu sempre me lembrava enquanto lia e não gostava do livro colombiano :

"Apenas deveríamos ler os livros que nos picam e que nos mordem. Se o livro que lemos não nos desperta como um murro no crânio, para que lê-lo?"

Ora, por vários motivos. Para conhecer um jovem autor  colombiano, para ver como ele tratava de temáticas humorísticas na construção do seu romance, quem sabe indicá-lo ao grupo de estudos, porque ele discute não só a importância social do humor, como também as práticas em trechos como este discurso de Mallarino, na cerimônia em sua  homenagem:

"... As coisas não mudaram muito. Nestes quarenta anos, me ocorre agora, há pelo menos duas que não mudaram: primeiro, aquilo que nos preocupa; segundo, aquilo que nos faz rir. Isso continua igual, igual como há quarentena anos, e temo bastante que continuará igual nos próximos quarenta anos. Às boas caricaturas buscam encontrar a constante de uma pessoa: aquilo que nunca muda, aquilo que permanece e nos permite reconhecer quem não vimos em mil anos."(p.38)

Ou quando Mallarino se refere ao seu mentor, em trecho fundamental para pensarmos no que, depois, vai acontecer no romance :

“Ricardo Rendón, meu mestre, certa vez comparou a caricatura a um ferrão, mas recheado de mel. Eu tenho essa frase em meu local de trabalho, mais ou menos como um marinheiro tem uma bússola. Um ferrão recheado de mel. A identidade do caricaturista depende das medidas com as quais ele mistura os dois ingredientes, mas os dois ingredientes devem estar ali. Não há caricatura sem ferrão e tampouco sem mel. Não há caricatura se não houver subversão, porque toda imagem memorável de um político é, por natureza, subversiva: desequilibra o solene e delata o impostor. Mas também não há caricatura se não houver sorriso, ainda que seja um sorriso amargo , na cara do leitor...”p.40

Ou esse , quase metalinguístico :

“as caricaturas podem exagerar a realidade, mas não inventá-la. Podem distorcer, mas nunca mentir” (p.39)

Importantes teorias sobre humor, adequadas à construção ficcional. Não deve ter sido fácil entrelaçar, assisti entrevistas de Vasquez e ele conta que demorou muito para escrever esse livro, teve que estudar bastante o mundo dos caricaturistas. A isso eu dou imenso valor. No entanto, para mim, pessoalmente,  não serviu para deixar o livro mais sedutor.

Para não dizer que o livro que me desagradou por completo, eu  gostei de como ele aborda a questão da memória, base mantenedora ou devastadora das reputações, a partir de uma personagem da história de Alice de Carroll, quando lembra que

“é muito pobre a memória que só funciona para trás” (p.122)

Esse passado móvel e instável trazido pelas memórias era como uma outra versão legítima do acontecido, que ganhamos de presente quando narramos o lembrado, mas sempre o modificamos. 

Nas memórias de uma festa há muitos anos, na casa de Mallarino ele diz:

"... não sei que coisas me passaram pela cabeça, mas não fui o único: todos os que estávamos na sala paramos de fazer o que estávamos fazendo. As taças foram deixadas na mesa. As conversas se interromperam. Os que estavam sentados se levantaram. Em minha memória, até a música se desligou, mas isso é impossível, que a música tenha se desligado automaticamente messe exato momenti, e no entanto eu me recordo assim: a música se desligou. A memória faz essas coisas, não é? A memória desliga as músicas e coloca pintas na pele das pessoas e muda de lugar as casas dos amigos.”(p.79, grifo meu)

Pois então, se o acontecido no passado não pode mais ser mudado, a narrativa dele , trazida pela memória, pode e essa é uma das graças de se contar a História.

 

domingo, 13 de junho de 2021

Ouvindo as vozes da morte em Pedro Parámo, de Juan Rulfo


linda capa com referência a passagem fluída entre vida e morte

SOBRE O ROMANCE :

Publicado em 1955, “Pedro Páramo” foi o único romance publicado pelo escritor mexicano Juan Rulfo, muito elogiado, incentivou gerações de escritores na América Latina e fora dela e dizem ter sido o precursor do tal realismo fantástico latino americano, por ser composto de maneira inovadora para a época, narrativa muito fragmentada e polifônica, saber quem narra requer muita atenção, pois ali se ouve até, e especialmente, os mortos. Ora, mas afinal de que se trata o livro?

Da história de Juan Preciado que, atendendo ao último pedido de sua mãe em seu leito de morte, que vai conhecer Comala, aldeia onde vive seu pai Pedro Páramo. Assim ele vai, num trajeto de descida infinita, onde o calor se intensifica cada vez mais, como se fosse um caminho para o inferno. Nesta viagem e também na chegada a Comala, Preciado conhece lugares e interage com pessoas, sempre em um clima nebuloso, pois não tarda a perceber que naquele povoado esquecido e afastado, também os mortos habitam o local de forma tão intensa que chega até a ser cômica a necessidade de indagar “estás vivo ou morto”? Como diz Eric Nepomuceno no prefácio da obra

“de maneira inesperada e com sutileza de equilibrista, vão se fundindo mortos e vivos ao longo do relato, até que essa diferença se dissolve por carecer totalmente de importância: o mundo de “Pedro Páramo” é outro e são muitos, onde tudo serve para que as peças deste mosaico se encaixem para alcançar a perfeição final.”(Edição Best Bolso, 2015.p.12)

Lembrando que se trata de um romance mexicano e que para tal país que, por herança de seus povos originários, mantêm o culto aos mortos, muito como forma de resistência aos valores tradicionais. Para Otávio Paz, em Todos os santos, dia de finados”:

“para os antigos mexicanos a oposição entre morte e vida não era tão absoluta quanto para nós. A vida se prolongava na morte. E o inverso. A mortenão era o fim da vida, massim outra fase de um ciclo infinito. A vida não tinha função mais nobre que desembocar na morte, seu contrário e complemento.; e a morte, por sua vez, não era um fim em si; o homem alimentava com sua morte a voracidade da vida.(...) O advento do catolicismo modifica radicalmente esta situação.(...) Para os cristãos, é o indivíduo que conta. O mundo - a história, a sociedade - está condenado de antemão. Cada um de nós é o Homem e em cada um de nós estão projetadas as esperanças e as possibilidades da espécie. A redenção é obra pessoal.”(In: Labirinto da solidão. RJ:Paz e Terra, 2006, p.50-1)

 

Afora essa questão cultural e profundamente antropológica, no breve romance se fala criticamente de diversos temas: Pedro Páramo é um coronel, o dono de Comala, a ele todas as força se vendem, inclusive a Igreja, dando a entender que todos os mortos daquela cidade fantasma, viraram almas penadas pois não tiveram nem a absolvição do padre Rentéria, que era mais um pecador entre tantos. Desta forma, não sendo um romance claramente cituado no tempo especifico,a aldeia e a vida/morte das personagens são atemporais, porém a história o perpassa sempre: por exemplo, temos a passagem dos revolucionáriosde Sancho Pança, referência a Revolução Mexicana; que tanto prometeu aos campesinos, mas acabou por abandoná-los em cidades literalmente fantasmas como Comala, com uma indiferença igual ou maior do que a dos antigos latifundiários...

Não quero desenvolver mais temas do livro ou dar spoiler, mas trago um trecho que, dentre tantos, julguei muito bonito.

É sobre Susana San Juan, a última esposa e verdadeiro amor de Pedro Páramo, que antes dele já tinha enviuvado. A perda do seu primeiro marido Florencio lhe foi tão dolorida que a levou à lamentar na sepultura, depois de morta, fazendo com que outros mortos, na sepultura comum, ouvissem seus lamentos pela eternidade:

“- O que ela está dizendo, Juan Preciado? - Perguntou Dorotea

- Diz que ela escondia os pés entre as pernas dele. Seus pés gelados como pedras frias e que ali se esquentavam como num forno onde se doura o pão. Diz que ele mordia seus pés dizendo a ela que eram como pão dourado no forno. Que dormia encolhida, metendo-se dentro dele, perdida no nada ao sentir que sua carne se quebrava, que se abria como um sulco aberto por um prego ardorosos, depois morno, depois doce, dando golpes duros contra sua carne macia; mergulhando, até o gemido. Mas que a morte dele tinha doido ainda mais. Isso é o que ela diz.” (p.112)

E, em outro momento, ela mesma assume a narração em trecho assim:

"Ah! por que não chorei e me alaguei em lágrimas para enxugar minha angústia? Senhor, tu não existes! Pedi tua proteção para ele. Que cuidasse dele. Isso eu te pedi. Mas tu só te ocupas das almas. E o que eu quero dele é seu corpo. Nu e quente de amor; fervendo de desejo; amassando o tremor dos meus seios e de meus braços. Meu corpo transparente suspenso pelo dele. Meu corpo leve preso e solto às suas forças; O que farei agora com meus lábiod=s sem sua boca para preenchê-los? O que farei dos meus lábios doloridos? " (p.113)

 

Livros comentados neste post

Como já é tradição nos comentários sobre os livros que leio, sempre coloco o “diário de leitura”, se ele existir. No caso de Pedro Páramo existe sim, e bastante, então vamos vendo as impressões que fui sentindo :

 

No dia 31 de maio eu escrevi

MIEDO A LOS MUERTOS - comecei a ler Pedro Páramo ontem e estou na metade. Já sabia que teria interação com os mortos, tudo bem pra mim que não tenho problemas, mas pra quem tem, recomendo cuidado, digamos que a presença deles é bem forte e normalizada. Estamos falando de um clássico mexicano, terra onde temos a festa dos mortos, né? Livraço!

 

Super empolgada, e com razão, mas depois bateu uma culpa e eu deixei de reparar no detalhe de que se trata de um clássico latino americano, por isso é denso e a gente não lê numa sentada, não mesmo. E também por isso, merecia uma edição mais trabalhada:

 

No dia 2 de junho eu me “chicoteei”:

LENDO PEDRO PÁRAMO- Nem deveria ter começado a ler sem antes escrever sobre "O avesso da pele", que me impactou demais, demais, mas como ainda não tive tempo de colocar uma pá de cal naquele (quem sabe hoje, com fé e coragem), a curiosidade era tanta que acabei começando a ler o surpreendente P. Páramo. Quando comecei a leitura fluiu tanto que achei que leria numa sentada, mas ,incrivelmente, a leitura não tem avançado. Acho que preciso me dedicar mais a ele, exclusivamente, porque ele merece...Geralmente costumo adorar edições de bolso, mas essa está me incomodando, não tem muito lugar pra escrever (esse livro exige um suporte anexo pra gente não se perder no quem é quem ou no quem é vivo e quem é morto), mas faço o que posso! De resto, tô gostando...

PS: A CAPA É LINDA... A gente sente isso mesmo no livro, a passagem entre morte e vida são tênues...”

No dia 3 de junho, tudo tem seu tempo e já no dia seguinte eu começo a estranhar o conteúdo morbido :

 PEDRO PÁRAMO -Já era pra eu ter me acustumado, mas toda vez que leio algo tipo "você está viva?", "você morreu de que?", "Quem te matou?" ainda me surpreendo! Que livro, gente!

No dia 7 de junho, como o livro é bom, fui me despedinco com saudade antes de terminar:

PEDRO PÁRAMO - Tô chegando nas páginas finais. O pequeno (porém complexo) livro me empolgou no comecinho, depois entramos na narrativa que, embora aposte sempre na mesma saída perturbadora (a presença e interação entre vivos e mortos) normalizou um pouco,mas é sempre surpreendente, para desembocar num final cheio de nós nos pontos frouxos, aí sim surpreende de verdade. Estou com pena de acabar. Carece de ter coragem.

No dia 10 de junho, depois terminei de ler e a dificuldade de sentar para escrever essas impressões de leitura me arrebatou:

LEITURAS - “Há dias terminei de ler Pedro Páramo: clássico, denso e sobretudo fúnebre, em um nível sem prescedentes. Antes dele já tinha tinha lido um romance tristissemo sobre um pai morto, agora , sem saber, "avancei" uns passos e mergulhei numa narrativa sobre morte, ou melhor, sobre mortos. Difícil é escrever sobre, vou tentar em alguns dias. Por hora comento: Não temos medo de fantasmas, claro, mas melhor que eles não surjam, não? Pois é...no caso não é bem medo, nem tristeza que eles me provocaram, talvez um desencanto, um desconforto. Sem medo de spoiler digo que, evidetemente, o romance não tem propriamente um final feliz, aliás, feliz seria se aquelas almas penadas tivessem qualquer final...

 

 

Para terminar, gostaria de abrir uma provocação: sabemos que Ruan Rulfo e Guimarães Rosa se conheceram, trocaram cartas (eu mesma nunca as li,mas sei da sua existência) e Rosa tem um conto, publicado postumamente em “Estas Estórias”, chamado Páramo. Tudo bem que o o Páramo ali se refere à região da cordilheira dos andes, nada de México, mas o tema do conto é justamente o embate entre a vida e a morte, como no romance de Rulfo. Conhecendo Rosa, não posso deixar de supor que esse tipo de coisa, muito provavelmente, não é coincidência...

 P.S. Quase ia me esquecendo de postar a música que embalou essa leitura. Não podia ser outra que não San Vicente, do Clube da Esquina, né?

 

sexta-feira, 4 de junho de 2021

Outros registros de leitura

 Não sei se deixei claro no último post o quanto a leitura de O avesso da pele foi intensa para mim, é que não tinha espaço para deixar outras impressões fortes. A gente lê pra isso:




quarta-feira, 2 de junho de 2021

O avesso da pele do pai preto morto

 

Eu e O avesso

Fácil não foi, desde que terminei de ler Marrom e Amarelo em janeiro muita gente recomendou que eu lesse o romance O Avesso da pele do Jeferson Tenório, mas que eu fosse com cuidado porque ele carregava mais nas tintas. Como adorei o livro de Paulo Scott, mesmo o achando bem pesado,  ao mesmo tempo que tive muita curiosidade de ler o Tenório, também tive medo. Pois em fevereiro tive que parar as leituras por prazer, tinha um grande trabalho a ser feito, mas em março e abril, assim que tive mais tempo, não foi ao Tenório que voltei, eu achava que não estava preparada. E não estava. Mas ouvi metade de algumas entrevistas como esta  (não via inteiras porque não queria saber demais, mas precisava saber alguma coisa). Desse período de investigação, o que trouxe comigo foi uma dica do próprio Tenório em algum lugar: para escrever o romance, ele voltou  ao Hamlet, à ideia do filho que vinga o pai morto. Baixei a peça e fui ler todinha, que delicia entrar em contato com aquela excelente literatura que, depois, foi fundamental para guiar minha leitura, a "presença de Hamlet" não é acessória, é fundamental e eu achei isso excelente.

Ilustração de Dani (1986) com o príncipe Hamlet falando com espectro do rei Hamlet

O fato foi que eu comprei o romance de Tenório, um livro novo, chegou da Amazon, com cheirinho de novo, mas demorei muito para abri-lo, ficava olhando a caixinha: 

me aguardou por muito tempo

Sabia que não ia ter tempo de ler como eu gostaria, preferi antes reler o Gabo, aqui e aqui e depois até uma homenagem a ele, marcando maio como mês de Gabo, o que de fato aconteceu. Mas no finalzinho do mês, com muita coragem, mergulhei no livro de Tenório. Que experiência, meus senhores!

Começou um arraso, e Hamlet aparece logo na epígrafe 



E publiquei as primeiras impressões :

O AVESSO DA PELE, CAP.1 - Esta epígrafe sheakesperiana, informando que quem está aqui é Hamlet (o rei morto)  cria o ambiente da história para o leitor do romance, o que é reafirmado naquele primeiro capítulo,  MUITO BEM ESCRITO, tratando da percepção do pai já morto na casa, que tanto me impactou, e que termina  reafirmando esta presença pairando sobre a história contada por J.Tenório. O primeiro capítulo foi uma experiência ímpar, tive que transcrever um trecho

"Às vezes você fazia um pensamento e morava nele. Afastava-se. Construía uma casa assim. Longínqua. Dentro de si. Era esse o seu modo de lidar com as coisas. Hoje, prefiro pensar que você partiu para regressar a mim. Eu não queria apenas a sua ausência como legado. Eu queria um tipo de presença, ainda que dolorida e triste. E apesar de tudo, nesta casa, neste apartamento, você será sempre um corpo que não vai parar de morrer. Será sempre o pai que se recusa a partir. Na verdade, você nunca  soube ir embora." O avesso da pele, Jefferson Tenório,p. 13. 😱  

O livro começa assim! Um dos mais incríveis começos de livro de que me lembro! Reli inúmeras vezes, deixando as palavras me  invadirem pelos meus ouvidos. Sabia que ia me demorar na leitura,  mas nunca esquecendo que o capitulo termina reafirmando a presença do pai morto :

"Olho para tudo isso e percebo que serão esses objetos que vão me ajudar a narrar o que você era antes de partir . Os mesmos utensílios que te derrotaram e que agora me contam sobre você.  OS OBJETOS SERÃO O TEU FANTASMA A ME VISITAR."p. 14.

Para além deste início, o livro se desenvolve muito bem: logo após a morte do pai, por uma batida policial, o narrador Pedro, tal qual o príncipe Hamlet, visita a casa do pai morto e narra ao espectro do seu pai a vida de seus pais , da família de negros em Porto Alegre ,  numa mistura bem temperada de realidade, invenção e depoimento. Centrado na trajetória paterna,  um professor de literatura negro às voltas com os conflitos raciais em uma das cidades mais frias e  conhecida como racista do país.  Em um dos vários trechos em que o narrador fala de uma investida policial que o pai passou narra da seguinte forma: "era o mês de junho. As ruas estavam desertas. Fazia frio, mas você não sentia frio por fora, o frio estava dentro" (150). A ideia do frio por dentro me lembrou uma das mais tristes e belas crônicas do Caio Fernando Abreu, Agostos por dentro, na qual,  embora ele  tenha vivido sua agonia em POA, essa escreve do Rio, mas o frio do hotel  não era por "viver em outra cidade", era de dentro. (Pequenas epifanias, p. 161-2).  

Mas voltando ao livro do Tenório. não é brincadeira de se ler. Ainda que tenhamos retratos belos da cultura black no Brasil, quando são citados alguns músicos de destaque como Milton Nascimento, Racionais MC, Itamar Assunção, Jardes Macalé e especialmente para mim, Luiz Melodia, pois é dele a trilha sonora da minha leitura, a sua Abundantemente Morte :  "...sou um morto que viveu, corpo humano que venceu, ninguém morreu..."

Mais ou menos na metade do livro, ele já tinha me feito pensar tantas coisas, chorar, me indignar, ter raiva e amor, eu fiz a seguinte reflexão :

  De algum jeito esse livro se parece com "Marrom e Amarelo" (os dois tratam da questão racial na Porto Alegre contemporânea), embora a experiência de leitura seja outra. Se no "Marrom" temos o colorismo e a força motriz é o ódio do narrador Federico por esse lixo de  sociedade racista e a leitura é eletrizante; neste, até pela sinopse fúnebre de revisitar a vida do pai morto, temos uma melancolia, uma tristeza profunda embrenhada em cada página, tanto que é até resignada, como que cansada de carregar quatrocentos anos de racismo nas costas. Uma fala do narrador Pedro ao espectro de seu pai , logo na primeira página, resume o que estou dizendo:"você entrou e saiu da vida  e ela continuou áspera".

Ainda bem que não sorri na foto de quando abri a caixa da Amazon, pois tenho quase certeza de que termino esse belo livro (apesar de tudo) num grande banzo

Dureza, como tudo envolvendo o racismo. Mas ainda preciso explicar melhor o que quer dizer o título do romance, se você achar que pode ser  spoiler, pode parar de ler aqui . No livro o narrador lembra o dia que o pai explicou o que era o avesso da pele:

"Você me dizia que os negros tinham de lutar, pois o mundo branco havia nos tirado quase tudo e que pensar era o que nos restava. É necessário preservar o avesso, você me disse. Preservar aquilo que ninguém vê. Porque não demora muito  e a cor da pele atravessa nosso corpo e determina nosso modo de estar no mundo. E por mais que sua vida seja medida pela cor, por mais que suas  atitudes e modos de viver estejam sob esse domínio, você de alguma forma, tem de preservar algo que não se encaixa nisso, entende? Pois entre músculos, órgãos e veias existe um lugar só seu, isolado e único. E é nesse lugar que estão os afetos. E são esses afeto  que nos mantém vivos." (grifo meu,p.61)

Para o pai de Pedro,  o professor de literatura,  o avesso da pele preta era a sensibilidade literária, que aparece em momentos como o que comentei aqui, resolvendo um problema até  banal, e principalmente nessa bela cena, onde essa mesma arma é capaz, literalmente, de salva-lo de alguma violência policial.

Quando acabei de ler,como previsto, estava num banzo só:



Tem muitas outras coisas a comentar sobre esse livro, que ele precisa urgentemente de bons leitores, porque é bom, é belo, contundente e necessário: Arrisquem-se em um dos melhores lançamentos da literatura brasileira contemporânea.