sexta-feira, 16 de julho de 2021

A morte anunciada e uma história de amor

Quando chegou fazia frio e me abracei nele 


 Estava com duas longas biografias bacanas aqui pra ler - do Gabo e da Elza - mas embora sejam do meu interesse, sinto tanta falta de ficção, afinal eu estudei a questão da construção ficcional na escrita de G. Rosa, sei como ela é capaz de realçar pontos importantes da realidade que a gente nem sempre enxerga a olho nu. Daí que comprei "Crônica de uma morte anunciada" ()esse, que era uma das minhas faltas na obra do colombiano.

A premissa é bem simples: Depois de um casamento suntuoso como nunca havia acontecido no vilarejo, a noiva é devolvida à casa dos pais por não ser mais virgem e, relatando o nome daquele que a havia violado, cabe aos seu irmãos, dois gêmeos que trabalhavam como açougueiros, anunciarem a morte do violador. Na verdade, expectando a passagem do navio trazendo o bispo, que nem chegou a desembarcar no povoado, nada além do anuncio dessa morte disso acontece na trama e o mais impressionante é como Gabo consegue manter o livro de pé, mesmo quase sem acontecimentos.  

Quando cheguei perto da metade escrevi um depoimento :

Na verdade, nada acontece na trama, só alguns fios que ficaram soltos (deve ter mais de 50 personagens, mesmo com lista, muitas vezes fiquei confusa) que precisam encontrar um final. depois me acostumei com a dinâmica. Mas no começo eu não estava reconhecendo o Gabo que eu amo, o das grandes histórias de famílias, o dos grandes amores por anos, o do REALISMO MARAVILHOSO. Esse é bom, mas diferente, sei lá, parecia um livro do Jorge Amado (histórias que o povo conta), ou um mistério como se fosse algum da Agatha Christie, embora não houvesse mistério algum: há a morte, há os assassinos e as versões...o livro é uma ode às narrativas, uma bela crônica, no sentido de ser um

 Conjunto de notícias que circulam sobre pessoas

Ilustração da capa: a faca


E é exatamente isso o livro... tem cenas fortes do “trabalho” dos assassinos com as facas, afinal eram açougueiros, tem cenas engraçadas e misteriosas, mas tem ainda um dos momentos mais lindos.Agora, se você ainda vai ler o livro e não gostar de spoiler, pare de ler aqui porque vou falar de quando o meu velho Gabo apareceu na narrativa, se quiser ouça este tema tradicional colombiano  enquanto lê. 
 Foi quando Ângela Vicário, a noiva que teria sido deflorada pelo Santiago Nasser e por isso devolvida após a noite de núpcias, descobriu-se apaixonada pelo marido que havia perdido e o narrador nos conta que

“Bastava-lhe fechar os olhos para vê-lo, ouvia-o respirar no mar, o calor de seu corpo acordava-a à meia noite na cama.” (p.136-7)

Passou então a lhe escrever cartas, uma por semana, durante metade da vida, mas nunca obteve qualquer resposta, até que, prossegue o narrador:

"Certa madrugada de ventos, no décimo ano, acordou-a a certeza de que ele estava nu em sua cama. Escreveu-lhe então uma carta febril de vinte páginas e na qual deitou sem pudor as amargas verdades que guardava apodrecidas no coração desde a sua funesta noite. Falou-lhe das marcas eternas que ele havia deixado em seu corpo, do sal de sua língua, da trilha de fogo de sua verga africana. Entregou-a à funcionária do correio que, nas sextas feiras, à tarde, ia bordar com ela para levar as cartas, e convence-se de que aquele desabafo final seria mesmo o último de sua agonia. Mas não houve resposta. A partir de então já não tinha consciência do que escrevia nem a quem escrevia; continuou escrevendo sem quartel durante 17 anos.

Em um meio-dia de agosto, enquanto bordava com as amigas, sentiu que alguém chegava à sua porta. Não precisou olhar para saber quem era. “Estava gordo, o cabelo tinha começado a cair e já precisava de óculos para ver de perto”, disse-me. “Mas era ele, porra, era ele!” Assustou-se porque sabia que ele a estava vendo tão decaída como ela o via, e não acreditava que tivesse tanto amor como ela para se conformar. (...) Baynardo San Román deu um passo à frente, sem se preocupar com as outras bordadeiras atônitas, e pôs os alforjes na máquina.

-Bem - disse- aqui estou.

Levava a mala da roupa para ficar e outra igual COM QUASE DUAS MIL CARTAS que ela lhe escrevera. Estavam ordenadas por suas datas, em pacotes amarrados com fitas coloridas, e TODAS SEM ABRIR. "(p. 139-41)


 Podem me chamar de boba, mas achei tudo isso tão lindo, nó!

Um último comentário: a parte final do livro, o destino de Santiago Nasser,  é bonito e me lembrou um tanto o clima de  "Pedro Páramo", de Rulfo.

Gostei muito de ler o Gabo novamente, que autor sensacional, um autor da nossa época! Adoro!






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