O romance de estreia de Stênio Gardel, “A palavra que resta” (2021) me surpreendeu muito para o bem.
Indicação da querida autora Socorro Acioli, cujo livro havia me interessado muito, pois é bastante divertido como comento aqui. Ela encontrou Stênio numa oficina literária que ministrou e o ajudou a despontar. Embora eu tenha gostado de ambos autores, que abordam em seu livros a questão do ouvir e escrever, tenho que confessar que do livro de Stênio gostei mais, porque o romance da Socorro parece uma obra infanto juvenil (conclui quando li, só depois soube que ela é autora infantil premiada!) e isso não é nada ruim, já o Stênio é mais poético e em seu breve livro, tive que pregar post its em quase todas as páginas, destacando belos trechos. Vou comentar um pouco aqui, mostrando a premissa e esboçando uma leitura do livro a partir de alguns pontos principais que, encantadoramente, se entrelaçam na trama, mas lembrando que estas são as mais evidentes e que chamaram a minha atenção, pois o livrinho levanta outras discussões. A premissa:
Antes de falar da HOMOFOBIA, preciso falar do amor entre Raimundo e Cícero, que é lindamente retratado no romance em trechos retirados da memória de Raimundo, como este :
“Um em frente ao outro. O rio correndo por eles. O mundo, lá,a rodar em torno deles. Raimundo girou o corpo e se encaixou no peito de Cícero, que o amarrou com os braços de pouca carne. O queixo largo, de barba mal formada, se aninhou nos ombros de Raimundo. Olhares pareados buscavam a nascente. Eles arquearam as costas, dobravam as pernas em direção ao torso e mergulhavam nas águas antigas do mundo, no líquido embrionário do homem."(p.25/6)
Eu vi algumas entrevistas de lançamento do livro e sei que Rosa não faz parte das primeiras referências de Stênio, mas para mim, como leitora, não deu para conhecer esse amor homossexual sertanejo e não me lembrar do Grande Sertão. Não apenas por ter que ser escondido, por aparecer representado no romance via linguagem em trechos assim:
“... E essa mania de desafundar memória velha? e uma vai puxando a outra, só atraso isso, de ficar lembrando, acaba se esquecendo do mundo, olha aí,vou me atrasar, tem jeito não, tem não, que tem lembrança que parece noda de caju, fica na gente nem que você não queira, ENUBLOU minha cabeça..." (p.24)
Stênio que me desculpe, mas é que com esse "enublou" (palavra linda, sonora! Em seu som tem nuvem? tem blues? tem neblina? Só deu pra lembrar de Riobaldo: "Diadorim era a minha neblina”. E outros pontos comuns também: por exemplo, só Riobaldo chamava Reinaldo de Diadorim, como só Cícero chamava Raimundo por seu nome do meio, Gaudêncio, nome “denso de saudade, as cinco vogais e acentuado” (p.11), era o seu nome para o amor perdido. Tem também a história do pacto com o demo, para trocar de corpo, que seu Baraúna contou ao Raimundo e Cícero lá na juventude e era muito “BOM DE OUVIR”(Ele usa essa expressão que eu ADORO!Grifo meu, p. 115), cheia de marcas orais “uma chance dessa na vida, de falar com o demo assim cara a cara, a gente não desperdiça, (sem ela) que história eu ia contar pra vocês?(grifo meu, p. 117) e a dúvida de Cícero era se não podia trocar, não o corpo, mas o que tinha por dentro, marcando o amor que sentiam como algo da ordem do maligno.
Em uma comunidade rural, tradicional, mais ou menos por volta da década de 1950, um amor assim, mesmo adolescente, teria dificuldade em ser aceito e Raimundo sentiu isso nas costas feridas pela surra do pai, mas o que doía mais era o silêncio da mãe, que transformaram Raimundo em Imundo, pois ele mesmo chegava a achar, às vezes, que o desejo por outro homem o sujava e ele teve que abandonar a casa e viver nas estradas, como chapa de caminhoneiros, fazendo serviço braçal, de macho, sempre escondendo sua sexualidade e usando cines pornôs para se aliviar. Foi no cine que ele conheceu a travesti Suzzaný, que ele ,de início, obedecendo a cultura em que foi educado, também rejeitou , agrediu, chamou de aberração, até que na cena da farmácia (126-8), uma das que mais me emocionou, Raimundo é obrigado a se colocar no lugar dela e perceber o quanto ele próprio tinha sido implacável e preconceituoso.
Outro ponto de meu total interesse, como leitora e pesquisadora, é a questão da alfabetização e não alfabetização, que é tão ricamente abordada no romance. A questão do Cícero ter escrito uma carta a Raimundo, que nunca aprendeu a escrever, mas sempre prometia que ia ensiná-lo as letras, o mantinha preso à situação de, em um mundo todo escrito, “não saber (ler) é quase ser cego podendo enxergar” (grifo meu, p. 19), até que, já idoso, decidiu estudar, porque de menino não teve oportunidade, então as
“mãos que talvez merecessem um descanso, é verdade.O tanto que fizeram. Mas por quê? Se tinham força para agarrar mais, viver mais? Então que fosse! E se adaptaram que foi uma beleza à nova tarefa. Era o possível mais certo, o encontro mais interessante, esse, a mão, o lápis e a folha de papel.”(grifo meu p. 30)
E depois, em outro momento poético, decidiu trocar o documento, pois já sabia assinar,
“não tinha motivo para ficar com documento só com a marca do dedo e ainda um carimbo vermelho, analfabeto. Tinha que trocar, que ele era outro. Saber ler e escrever estava fazendo isso mesmo. Raimundo Gaudêncio de Freitas no papel. Alfabetizado. Palavra das grandes, tem “a” e “z”, a primeira e a última. Alfabetizado sabe do “a” ao z”. mas escrever nome é mais que saber as letras. Tinha que juntar uma na outra e se juntar a elas. Só assim faziam do nome completo mais que letras, todo ele, de “a” a “z”. ´(grifo meu, p.27)
Que linda essa parte! Eu, que no curso de licenciatura, fiz um estágio no curso de alfabetização dos funcionários terceirizados da USP (sim, muitos dos trabalhadores da maior universidade da América Latina eram analfabetos e se não fosse uma iniciativa discente, assim continuariam), sei mais ou menos o quando letramento significa, sim, DIGNIDADE!
Mas o caso do Raimundo, que decide estudar para ler, ele mesmo, a carta que, violentamente, Cícero havia escrito para ele, não estava resolvido, pois ele sabia ler, escrever, mas será que o suficiente para ler aquela carta que “se arrasta, está aqui, se duvidar mais inteira do que eu”(p.88), e não se resolve com a alfabetização, porque a carta foi escrita para ser ouvida, mas nunca que Raimundo dividiria essa intimidade com outros, mesmo que tivesse medo de ler e o sentido ficar todo furado.
A Isabela Lubrano, do canal Ler antes de morrer, fez uma resenha bastante azeda desse livro, defendendo que quem se interessa pela premissa nem precisa engrenar na leitura, pois o resultado final deixa a desejar. Eu, como quase sempre,discordo fortemente dela, pois temos gostos literários distintos. Na verdade, na polifonia de vozes da narrativa, a carta e seu significado pleno -que é elemento principal da vida de Raimundo e também do romance- acaba ficando um pouco “enublada” na trama, como se Stênio estivesse guardando esse segredo tão íntimo dos amantes só para eles mesmo. Mas isso não depõe contra o romance, são tantas coisas abordadas nele, como tentei mencionar algumas aqui, que acaba ficando um mero detalhe.
Enfim, que livro, meus amigos, parabéns e obrigada Stênio Gardel!
Um apêndice: Flor símbolo do amor juvenil entre Raimundo e Cícero, a papoula amarela e vermelha virou um signo que resistiu ao tempo e foi capaz de substituir a cruz à margem do rio, colocada há muitos anos devido a uma morte por homofobia. Esse livro tem sua simbologia
PLUS: EM 28 DE AGOSTO:
Stênio Gardel leu este post e comentou no Instagram. Eu respondi que é porque o texto dele me permite ler assim. Acho que eu achei 1.autor que é do meu tipo e ele achou uma leitora como gosta. FORMOU !
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