quinta-feira, 16 de janeiro de 2025

Carlabê : Vozes femininas do centro de São Paulo

 

Linda foto num dia frio de verão 

Ganhei esse livro de natal de uma amiga minha de anos que viu quando eu disse que seria uma leitura que eu queria fazer em 2025. Chegou em casa no dia 29 de dezembro de 2024 e foi uma festa, mas eu só iria começar a ler no ano novo, como de fato aconteceu.

Quanto carinho

Carlabê, segundo romance da Isabela Noronha, é  sobre a amizade entre a radialista Saramara, a narradora do livro, e a jovem Carlabê, que dividiam um apartamento no centro de São Paulo, até que Carlabê some, enquanto um corpo jaz em frente ao prédio onde elas moraram. O livro trata de muitas questões inseridas nessa narrativa simples, que vão desde o cunho pessoal, como a problemática feminina, até questões histórico sociais como a gentrificação no centro de São Paulo. Seguindo a Wikipédia, o conceito de gentrificação seria : 

Gentrificação (do inglês gentry, "pessoas bem-nascidas") é um conceito sociológico que acarreta a substituição física, económica, social e cultural[1][2] de um bairro ou uma área urbana proletária para burguesa após a compra de propriedades, e sua consequente revalorização no mercado através do influxo de residentes e empresas mais abastados.[3][4] É um tema comum e controverso na política e planejamento urbano. A gentrificação geralmente aumenta o valor econômico de um bairro, mas o deslocamento demográfico resultante pode se tornar um grande problema social. A gentrificação, muitas vezes, vê uma mudança na composição racial ou étnica de um bairro e na renda familiar média à medida que a habitação e os negócios se tornam mais caros e os recursos que antes não eram acessíveis são ampliados e melhorados.

Como esse processo afetaria a vida de duas mulheres que vivem sozinhas em um bairro central, mas de constante valorização, como o Santa Cecilia é o tema central do romance.

AS VOZES 

Outra questão que eu destaco é a própria escrita de Noronha,  expressa em uma narrativa polifônica, mito contemporânea , cuja voz principal é a de Saramara, que relata a um interlocutor desconhecido, tudo o que sabe sobre a amiga Carlabê, que está sumida. A voz do interlocutor, que conhecemos só através das respostas de Saramara, destaca mitas questões que nós leitores vemos nos fazendo a partir da fala ininterrupta de Saramara, ou seja, ele é uma espécie de espelho do leitor.  Essa opção pela narração depoimento oral, a um  interlocutor mudo, para mim , como leitora, lembra demais a estrutura narrativa do Grande Sertão: Veredas, embora a diferença de linguagem seja evidente. Depois voltarei a falar do romance de Rosa a partir de uma citação  que recolhi do Carlabê, mas aí será outra história, por hora cabe destacar que a voz de Saramara, e do seu interlocutor mudo,  é a alma desse livro, é tão vivaz e não muito confiável quanto Riobaldo,o que me atraiu muito. Além da propria autora, eu ainda quase não ouvi ninguém sobre o Carlabê, por isso esse texto é bem unilateral. Li apenas ESTA RESENHA, escrita pela baiana Edna Góis, que é muito boa e traz relações literárias mais contemporâneas que eu desconhecia e vão além da referência ao clássico rosiano.  

Outra voz do romance é a da própria Carlabê, uma jovem solitária, com pouco estudo,  que trabalha subempregos para tentar permanecer morando no centro de São Paulo e tem a história marcada por eventos de toda jovem mulher, é assediada, sofre com gravidez indesejada, etc. Quando o romance começa e ela está sumida "há mais de uma semana", ela já não morava mais com a amiga Saramara, mas ainda trabalhava num açougue na região do largo de Santa Cecília. A voz de Carlabê é ouvida no romance através das cartas a seu irmão Abelardo,  que escreve em seu caderno, que está então em posse de Saramara. O conteúdo das cartas de Carlabê é o oposto da narrativa horizontal  de Saramara, mas é uma voz audível no romance: o que diria, se pudesse ser ouvida, aquela jovem garota.   

Talvez a voz feminina mais audível ao leitor, é a da cidade em pleno processo de modificação contante, que produz ruídos o tempo todo, falando alto e também calando o que ainda não deve ficar claro. Com esse artificio arriscado , Noronha aposta em uma das mais interessantes representações literárias da cidade de São Paulo que conheço.

Eu escolhi alguns poucos trechos interessantes do livro que gostaria de colar aqui, discutindo essas questões acima levantadas. 

A VOZ DA CIDADE

"Essa poeira no ar é a verdadeira notícia, eu acho. Ela embaça a vista, de noite então é um véu mais grosso,um véu sobre o véu da noite. Aqui no centro é ainda pior. É o pior lugar da cidade,o pior. Já mediram,trouxeram o aparelho que mede as partículas do ar. Trouxeram aqui e não deu outra , é o pior lugar para se estar. Respirômetro: se escreve como se fala.(***) Não é à toa (tosse tosse). E agora um corpo. Vem debaixo do nosso nariz e da janela da sala, debaixo também da lona da polícia e logo mais debaixo da terra. Sete palmos. Sete palmos uma ova, que estamos no Brasil. Isso dá o quê? (***) Cento e sessenta centímetros, obrigada. Um metro e sessenta, uma de mim inteira abaixo do chão. Enterrada de pé. Se é essa a medida. Alguém já confirmou com um coveiro? Quanta porcaria repetimos e repetimos. (Buzina, bate-estacas). Esqueça. Isso não muda nada. Está aí o cadáver."(p. 20)

"A cidade, o que ela quer dizer, jovem? Este barulho, o som, não para, ela não permite silêncio. Ou pior: o que ela cala com seus gritos? Hein? Fala por cima da gente." (P. 55) 

"Venha, sente-se, sente-se. À vontade, jovem. Descruze essas pernas, relaxe. Ouça a cidade. [bate-estacas, pássaros, choro de criança, vendedor gritando ofertas, martelete].Você ouve? Vida, jovem, vida! E Carlabê lidando com a morte, cheirando a morte, cotando  morte, moendo a morte, jovem! Vendendo a morte rodo dia. (74)   


CORPO ESTENDIDO NO CHÃO, A MORTE DA CIDADE 

"Veja a última vez. O corpo solo, no solo. Ali jaz. E a cidade jaz também ao redor. A cidade jaz há mais tempo. Sem o direito de ser enterrada. Ou talvez seja essa a função de todo esse pó. Colocar sete palmos sobre ela, deixá-la descansar. Mas o corpo agora está tão só, protegido pelo manto (serra policorte,ininteligivel )  em frente à papelaria (***) Não vou o cartaz plotado na porta? Xerocan,imprimem e plastificam. Mas tem que vender brinquedos também. Não prevejo um bom dia de vendas. O que você acha? Ou o corpo vai é chamar mais gente ali, não sei. Vou confessar: tenho vontade de fazer companhia a ele. Por que esses olhos tão grandes,jovem? É só carne." (P. 29)

"Carta 

No caminho pra cá cinco quadras quatro obras

Sem ninguém prédios no

Esqueleto 

Vem dessas obras o pó do ar saramara falou

Respirar dói esse vento gelado em nenhum momento você 

Pensou que ia pegar para mim abelardo roubar o açougue 

Roubar o golsalves é me roubar porque eu e o

Gonsalves

Fico inacredo contigo " (p.54)

"Esse pó, essa areia (tosse tosse).É assim também no seu  bairro? Sabe, não é só das construções, do chão sendo remexido e perfurado para subir mais um prédio. É também daqueles que estão virando ruína, dos micropedacinhos se soltando da velharia sem manutenção que tem aqui." (P.175)

"...eu só percebendo a inquietação, a água começando a fazer bolhas dentro dela,pronta para subir fervura. Carlabê querendo sentir que cabia, que se encaixava em algum lugar" (p.116)

OUTRAS REFERÊNCIAS 

AO GRANDE SERTÃO?

"Este bairro me mastigou, me engoliu, me cuspiu outra. Uma autóctone." (Carlabê, P.45)

"“O sertão me produziu, depois me engoliu, depois me cuspiu do quente da boca.” (Grande Sertão: Veredas)

 À BLITZ 

"Carlabê, agora desapareceu, sumiu, escafedeu-se, minha Arlinda Orlanda. Volte! Volta pra casa."(93).

COISAS DE MULHERES

" Carrego lenços na bolsa, essa é a lição número 3, jovem. Sempre carregue lenços, eles limpam lágrimas e todo tipo de sujeira. Mantém suas mãos imaculadas.,(p. 181)

"...eu só percebendo a inquietação, a água começando a fazer bolhas dentro dela,pronta para subir fervura. Carlabê querendo sentir que cabia, que se encaixava em algum lugar" p.116 

MARCAS DA LEITURA

A leitura do romance foi rápida, durou entre 3 e 7 de janeiro, marcada por postagens muitas vezes musicais das redes sociais. Nelas eu expresso algumas questões que me ajudam a formar um desenho do romance. Depois, como boa leitura, reverberou no meu pensamento :

3 de janeiro

CARLABÊ:Comecei a ler apenas as primeiras paginas ontem,por enquanto ainda não estamos flanando pela cidade, estamos no apartamento onde Carlabê morou com Saramara. Por hora só ouvimos um áudio de Saramara conversando com um interlocutor que grava a conversa sobre Carlabê. É uma leitura saborosa, escrita instigante, nada linear, requer muita atenção para saber quem está falando, quem está ouvindo ... É cheia de sons (a narrativa é cortada pelo som de ônibus, de carro de polícia, etc), de cheiros. Saramara explica que Carlabê trabalhava em um açougue e tudo que ela não queria era ficar cheirando carne, por isso emanava outros cheiros:
"Sente o cheiro? Baunilha, lavanda, frutinhas. Principalmente baunilha. O cheiro dela. Você sabe, o cheiro são moléculas que se desprendem de algo. Então, nesse sentido, ela segue aqui, sim." (P .11)

4 de janeiro

CARLABÊ: Saramara, uma jornalista sessentenária , e a jovem Carlabê ,que está desaparecida, moraram juntas num apartamento no bairro de Santa Cecília, mas não têm parentesco, são amigas , se ajudam, são companheiras. O que as une de verdade é a situação: duas mulheres sozinhas no centro da "maior cidade da América do Sul"("Sassa" canta Baby trocando "melhor cidade" por "maior cidade"). Elas "usufruem" de alguns "benefícios" como poder ir trabalhar a pé, caminhando pelo chão do centro, onde são vizinhas dos "mendigos, esses que abrem mão de um teto em outra parte 'da maior cidade', mas não abrem mão do chão, deste chão. Deste bairro. Do centro."(P.51)
O livro está se mostrando como uma espécie de raio-x de um viver no centro, como eu esperava encontrar. A narrativa é polifônica e a voz da cidade é a mais constante, pois a escrita de Noronha é bem contemporânea... Estou gostando muito, sentindo cada vez mais forte aquela agonia de ser uma mulher engolida pelo centro da "maior cidade" .
Sobre "Carlabê", Isabela Noronha. São Paulo: Cia das Letras, 2024

5 de janeiro

CARLABÊ: "Carlabê, agora desapareceu, sumiu, escafedeu-se, minha Arlinda Orlanda. Volte! Volta pra casa."(93).
Saramara é uma narradora sensacional, a alma desse livro! Eu sabia que esse "Arlinda Orlanda" era uma referência oculta (o livro tem algumas delas, eu amo), mas demorei tanto pra lembrar de onde veio:"Estou a dois passos do paraíso", da Blitz!


6 de janeiro

CARLABÊ: Faltam pouquíssimas páginas para o fim, não estou sabendo lidar com o fato de que logo vou me despedir da narrativa de Saramara, ou que até essa altura nada, ou quase nada, está claro para mim nessa história. Talvez termine assim, em aberto. Tomara que não, é um livro sensacional, merece um final! Vamos ver ...



7 de janeiro

CARLABÊ: Como havia adiantado, realmente terminei de ler meu primeiro livro do ano ontem. Em geral, pela sua escrita performática, posso dizer que é um livro literalmente sensacional, que causa sensações, porque não está totalmente pronto e coloca o leitor pra "trabalhar" a cada linha , para "completar", para ler cartas, ouvir os incômodos ruídos da cidade, a tosse, os silêncios cortando o texto o tempo todo! No fim me diverti, me emocionei e já estou com uma baita saudade! Saudade de cantar com Saramara, saudade do "pé do todi" (essa só entende quem leu), saudade do chão de Santa Cecília ,saudade de perfume de baunilha de Carlabê, saudade do seu "fodace"! Esse é só um texto curto de primeiras impressões,mas selecionei alguns trechos ótimos sobre a cidade,sobre o centro, sobre a vida e devo usar como norte do texto maior sobre ele que escreverei no Pequenidades. Dessa vez não vou deixar passar meses,juro!



9 de janeiro 

"OUVINDO" AUTORES NO INSTAGRAM: Como sempre digo, uma das coisas que mantém ativa minha conta no Instagram é a possibilidade de, eventualmente,me comunicar com autores que estou lendo. Não que seja essencial, afinal sempre prefiro ler a obra antes de ouvir o autor, mas é um deleite: acabo sempre conferindo se tem perfil do auto(a), quando tem, observar como se comporta com os leitores, etc. Embora eu comente em postagens as leituras em seu solitário decorrer, nunca marco o autor(a). E quando o livro é muito impactante eu mesma nem desejo falar nada,mas sempre acabo aprendendo alguma coisa acompanhando perfis de autores.
No caso de Isabela Noronha, autora de "Carlabê", eu soube do livro ouvindo ela falar dele, sobre "gentrificação no Santa Cecília" (atentei de cara para esse masculino) numa entrevista. Primeiro ouvi a autora. Agora, depois de meses desejando ler, ganhei de natal, li e fui assistir novamente aquela entrevista: Foi muito bom conseguir visualizar melhor, tanto o projeto literário de Isabela, quanto o próprio romance Carlabê. Nesse caso, ainda não sei se já quero comentar minha leitura com ela, tenho vergonha, embora ache que ela, uma autora de oficinas literárias, do tipo que gosta de ouvir leitores, adoraria saber que também achei seu livro "estranho"(ela adorou quando disseram isso). Eu é que ainda preciso digerir melhor.Fica o registro...


Aí fiquei namorando meu exemplar tão bonito 



Que leitura, meu amigos. Agora que escrevi esse post enorme sobre o maravilhoso primeiro livro do ano, já posso embarcar no segundo. Veremos ...

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