"O Baile da Betinha é o símbolo da liberdade feminista endossada pela voz de Erasto Vasconcelos. O clip utiliza a boneca de Mestre Saúba." (legenda do Youtube)
domingo, 21 de dezembro de 2014
sábado, 20 de dezembro de 2014
Adeus ao Carlos Vilaró, o dono da "casa que não era"
Lendo a lista de mortes de 2014 soube que em fevereiro o artista plástico uruguaio Carlos Vilaró morreu aos 94 anos. Vocês sabem que a músca "A Casa" foi originalmente composta pelo Vinicius e as filhas do artista na casa dele, que depois virou um hotel.
A história da música é contada no livro Histórias de canções: Vinicius de Moraes., de Wagner Homem e & Bruno De La Rosa:
Tudo começou durante o período em que Vinícius de
Moraes trabalhou na embaixada brasileira em Montevidéu e tornou-se amigo do
artista uruguaio Carlos Vilaró, que, em 1958, havia começado uma construção
pouco convencional. Inicialmente era apenas uma casa de lata. Com o tempo foi
acrescentando novas partes, todas com formas arredondas e pintadas de branco
para contrastar com o azul do céu. O espaço, conhecido como Casapueblo, tornou-se um hotel com mais
de setenta quartos, que levam os nomes de seus hóspedes mais ilustres. [....]
Nas suas estadias na Casapueblo,
Vinícius brincava com as filhas do anfitrião dizendo, “Era uma casa muito
engraçada, não tinha teto não tinha nada” e terminava com os versos “Mas era
feita com pororó [termo indígena que significa palavras ocas; lega-lega]/ Era a
casa di Vilaró”. Os versos finais da letra foram substituídos na gravação por
“Mas era feita com muito esmero/ na rua dos bobos, número zero”. (HOMEM; ROSA,
2013, p. 172-3)
Está um pouco atrasado, mas deixo meus agradecimentos ao Vilaró por tudo e,em especial, por ter inspirado a melhor definição de infância que eu já ouvi: "não tinha teto, não tinha nada ..".mas era tudo!
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sexta-feira, 19 de dezembro de 2014
Instrucciones para subir una escalera al revés - Julio Cortázar
Instrucciones para subir una escalera al revés
En un lugar de la bibliografía del que no quiero acordarme, se explicó alguna vez que hay escaleras para subir y escaleras para bajar; lo que no se dijo entonces es que también puede haber escaleras para ir hacia atrás. Los usuarios de estos útiles artefactos comprenderán, sin excesivo esfuerzo, que cualquier escalera va hacia atrás si uno la sube de espaldas, pero lo que en esos casos está por verse es el resultado de tan insólito proceso. Hágase la prueba con cualquier escalera exterior. Vencido el primer sentimiento de incomodidad e incluso de vértigo, se descubrirá a cada peldaño un nuevo ámbito que, si bien forma parte del ámbito del peldaño precedente, al mismo tiempo lo corrige, lo critica y lo ensancha. Piénsese que muy poco antes, la última vez que se había trepado en la forma usual por esa escalera, el mundo de atrás quedaba abolido por la escalera misma, su hipnótica sucesión de peldaños; en cambio, bastará subirla de espaldas para que un horizonte limitado al comienzo por la tapia del jardín, salte ahora hasta el campito de los Peñaloza, abarque luego el molino de la Turca, estalle en los álamos del cementerio y, con un poco de suerte, llegue hasta el horizonte de verdad, el de la definición que nos enseñaba la señorita de tercer grado. ¿Y el cielo? ¿Y las nubes? Cuéntelas cuando esté en lo más alto, bébase el cielo que le cae en plena cara desde su inmenso embudo. A lo mejor después, cuando gire en redondo y entre en el piso alto de su casa, en su vida doméstica y diaria, comprenderá que también allí había que mirar muchas cosas en esa forma, que también en una boca, un amor, una novela, había que subir hacia atrás. Pero tenga cuidado, es fácil tropezar y caerse. Hay cosas que sólo se dejan ver mientras se sube hacia atrás y otras que no quieren, que tienen miedo de ese ascenso que las obliga a desnudarse tanto; obstinadas en su nivel y en su máscara se vengan cruelmente del que sube de espaldas para ver lo otro, el campito de los Peñaloza o los álamos del cementerio. Cuidado con esa silla; cuidado con esa mujer.
Julio Cortázar
Escrever, criar, parir ...
"Recorda Cortázar que, enquanto escrevia os capítulos mais difíceis de O jogo de amarelinha, trabalhava em tal estado de porosidade e de desamparo, sentia-se tão frágil e exposto que, como uma criança, dependia da mulher para fazer as coisas mais banais. "Ela me dava colo, me levava para tomar um pouco de sopa", recorda. "Eu estava completamente dominado. Comer, tomar uma sopa, eram as atividades literárias. A outra coisa - a literatura - era o verdadeiro."
Texto publicado no livro A literatura na poltrona, de José Castello e postado no Facebook por Eduardo Lacerda.
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domingo, 14 de dezembro de 2014
Crianças de 9 religiões diferentes desenham Deus
A matéria está na TV Folha, o link é esse aqui:
http://www1.folha.uol.com.br/serafina/2014/12/1560920-criancas-de-9-religioes-diferentes-desenham-seu-jeito-de-encarar-deus.shtml
http://www1.folha.uol.com.br/serafina/2014/12/1560920-criancas-de-9-religioes-diferentes-desenham-seu-jeito-de-encarar-deus.shtml
sábado, 13 de dezembro de 2014
Retrospectiva de 2014 :O ano que fui reaprendo a ver !
(Esse texto pode ser alterado até o final do ano).
Faz tempo que eu não fazia uma retrospectiva do ano, né? Nesse aqui, que foi monstro, eu nem ia fazer, mas tentei e saíram coisas bacaninhas (já tive anos melhores, mas foi o que teve)... vamos lá:
Comecei o ano marcando consulta
no oftalmologista logo no dia 2, mas não seria ainda essa a data de ter novos
óculos mágicos. Em janeiro eu me apaixonei mais e mais pelo Julio Cortázar e,
como ainda estava terminando a tese, pesquisei muito sobre
Vinicius de Moraes, o poetinha, e o seu lindo livro/disco “A Arca de Noé” me fez
descobrir a Biblioteca Infantil Viriato Correa: muito amor.
Em fevereiro eu estava na versão
hard de ESCRITA FINAL DA TESE,e já habitava outra das minhas outras casas,
que é a Biblioteca de Ciências Mário Schenberg, muitas emoções e os óculo, ainda
velhos, se mostravam tão mágicos! Em fevereiro, por causa do Facebook, soube
que uma orquestra brasileira levou o som sensacional do Tom Zé a Alemanha,
coisa finíssima! E assisti uma elucidativa entrevista do Antonio Prata sobre
como foi adquirir o que ele chamou de “sotaque
infantil” para escrever seu “Nu de botas”, apesar da tensão, foi bem legal
fevereiro.
Novamente comecei o mês no
oftalmologista, desta vez não para mudar os óculos, mas porque machuquei os olhos e não pude usar lentes de contato
por 90 dias, o que me levou a ficar muito em casa, vendo vídeos e ouvindo
rádio. Nessas vi o depoimento de Haroldo de Campos sobre o Rosa e achei de
arrepiar! No rádio, o programa Supertônica, do Arrigo Barnabé, me proporcionou ouvir uma linda
entrevista do Rodrigo Campos, e viciei no disco dele São Mateus não é assim
tão longe. Mas também tivemos coisas não tão boas, vi os vídeos sobre os
exilados no Chile em 1971, muito fortes os depoimentos de pessoas como o Frei
Tito (a violência injusta e intragável
sempre), da "Dodora" (centrada, bonita,
mas que teve fim terrível). Naquela época eu ainda não sabia que iam cogitar a
volta da ditadura militar nas ruas no fim do ano, vejam vocês!.
Comecei abril, de óculos velhos,
discutindo um texto no então inaugurado Grupo de Trabalho (GT) História da
Infância e Juventude da ANPUH SP, muito bacana. Também em abril eu li o último
livro de Robert Darton Poesia e polícia e ele já foi citado na tese, que ainda
estava em andamento. Em abril eu publiquei meu primeiro artigo científico na
Revista Manuscrítica, sobre os
Cadernos de Rosa. Também em abril o Gabo
deixou este plano, o que me levou a fazer uma retrospectiva de seus livros,
muito bom saber que ele vai sempre estar aqui com as histórias que contou. Em abril, pela primeira vez, ouvi a voz do Guimarães Rosa, que
emoção!
MAIO
Maio foi o mês do depósito da tese, tensão maior não há. E
logo eu comecei a assistir os vídeos disponibilizados pelas Comissões da Verdade,
e foi muito emocionante, claro. Nesse mê eu comecei, verdairamente, meu período de
letargia, onde ainda me encontro. Osso.
Em junho eu redescobri um grande amor: Benjamin traduzido por João
Barrento me fez ver o mundo mais colorido, ter mais vontade de estudar, de
crescer e pesquisar. Tentei conhecer
gente nova, até consegui um pouco, mas nada de muito sério, porque Saturno
estava na área, olhando tudo, já era. Também em junho começou a Copa do mundo, que
delicia essa cidade cheia de homens como nunca dantes! Me diverti pacas ouvindo OEAAA!
JULHO
No começo de julho a Copa
continuava e o Brasil perdeu, com a mais vexatória derrota de sua história: 7 a
1, para nunca mais esquecer, mas naquela mesma noite, eu e minha amiga Giuliana
, afogamos as mágoas num show histórico : Som
Imaginário, comemorando só 50 anos
de carreira, super Buena Vista Social Clube... muito emocionante. Tive uma
experiência linda com os professores de
Educação Infantil, da CEI Vila Calu em Cajamar, muito emocionante. Assisti e amei o filme Paulo
Vanzolini: Um homem de moral, letargia me dominava. Mas ainda assim, a Ana
Carolina me levou ao cinema para assistir Que Estranho Chamar-se Federico – Scola Conta Fellini
. No final do mês, em um fim de tarde bem gélido, e vestida a caráter, assisti ao fantástico show do
violeiro Noel Andrade, ótima surpresa.
Mês da defesa, que não foi como
eu planejei que seria por conta do clima pesado, pois perdemos o professor Nicolau Sevcenko, todos
ficamos muito abalados. Não foi fácil e o Julio Cortázar me ajudou a
superar o clima ruim. Agradeço de
coração aos amigos que me apoiaram naquele momento, em especial a Fernanda
Duarte e Fabio Flora, que me fizeram chorar de emoção pois eles me enviaram
lindas rosas vermelhas.
SETEMBRO
Em setembro mergulhei na história de Inês Etienne Romeu e admirei profundamente aquela mulher de coragem. Tom Zé, como sempre, se manifestou positivamente em relação à situação da USP, esse nunca me decepciona. Em setembro eu ia viajar para Minas, meu sonho, mas tive virose e não deu certo, apesar disso escrevi um artigo bem legal, que ainda está em fase de apreciação, mas nunca vou esquecer as condições que o escrevi (diarreia e febre), um horror. Nos dias doentinha a Fernanda Duarte e o Fábio Flora me deram mimos, me enviaram o livro Ver: amor e outras fofuras que não tem preço.Quando melhorei, acompanhei o Workshop Escritas de ouvido, com a professora Marília Librandi-Rocha (Stanford University), e foi bom porque confirmei que as ideias da minha tese são as que estão bombando no mundo sobre escrita da fala. Em setembro (re)descobri que ainda tenho um coração para amar e ser amado, mas ainda no campo das hipóteses.
Outubro foi o mês mais literário,
além do Kawabata, que me arrebatou, teve
mais Cortázar, Hilda Hilst, David Grossman... muita música com Geraldo Azevedo e Pequeno Cidadão e a música para as ciclovias. Tivemos eleições e foi show de horror, credo, mas sobrevivi ao meu aniversário e aos tempos ruins desta vez com a ajuda da minha amiga de infância Cassia, e dos colegas que me animaram no aniver como o Thiago, a Aninha, a Vera, a Martha, a Sonia e todo mundo mais. Tivemos o chopps e o brigadeiro de colher que esparramava da colher, coisa de louco!
Mês do Gabo, novamente. Memória de minhas putas tristes me
arrebatou, me levou aos contos, a Grimm, a Grossman e a vida até que foi
difícil, mas tem coisas legais também. Em
novembro, enfim, fiz novos óculos mágicos, e com ele vi o cara mais inacreditavelmente lindo que já vi em busão, um Criolo de verdade. Amei alguns historiadores, tanto da
social quanto da econômica, que estiveram em congressos na USP, e senti que é legal estar entre os pares. Fui leitora relatora de um texto do GT sobre
história da juventude, legal pacas. E teve a cereja do bolo do ano : Show Vira
Lata na Via Lactea do Tom Zé, que teve seus 78 anos aplaudidos de pé, porque o
mundo é bão, Sebastião.
Foi o mês de pesquisar mais sobre
Pedro Bloch. Vários livrinhos, artigos científicos, anedotários e o fabuloso
livro Os irmãos Karamabloch, de
Arnaldo Bloch, que foi uma leitura rápida, útil e muito agradável. Na expectativa do dia 23, quando Saturno se
movimenta para outro signo e, espero, saio da letargia.
Um ano meio sem graça, o qual comecei invocando "Bem vindo 2015", mas passei por ele confiante e sempre querendo VER MELHOR, isso que importa,
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quarta-feira, 10 de dezembro de 2014
Presidente Dilma recebe o relatório da Comissão Nacional da Verdade em 10 de dezembro de 2014
Nesta manhã a CNV entregou a presidente o Relatório da investigação a respeito das sérias violações dos direitos humanos cometidas pelo Estado em regimes ditatoriais no Brasil do século XX. Na ocasião a presidente se emocionou, como podemos ler nesse link. Nas palavras da presidente :
"Nós, que acreditamos na verdade, esperamos que esse relatório contribua para que fantasmas de um passado doloroso e triste não possam mais se proteger nas sombras do silêncio e da omissão. Na cerimônia de instalação da Comissão Nacional da Verdade em maio de 2012 eu disse que a ignorância sobre a história não pacifica, pelo contrário, mantém latente mágoas e rancores, disse que a desinformação não ajuda a apaziguar, apenas facilita o trânsito da intolerância . Afirmei ainda que o Brasil merecia a verdade, que as novas gerações mereciam a verdade, e sobretudo , mereciam a verdade aqueles que perderam familiares, parentes, amigos, companheiros e que continuam sofrendo (pausa e aplausos) como se eles morressem de novo e sempre a cada dia ..." Dilma Rousseff 10 de dezembro de 2014
Mas merecemos a verdade mesmo. Enquanto eu estava na graduação em História entre 1999 e 2003, o tema ditadura era ao mesmo tempo presente - até porque pessoas que tinham vivido intensamente aquilo ali se encontravam
presentes-, mas também era assunto velado tantas vezes como tema de debate ou mesmo de aulas, salvo especialmente as inesquecíveis aulas da professora Maria Aparecida de Aquino. Talvez aquele silêncio se deva ao fato de que ainda havia pouca produção sobre isso e a história, como processo, requer algum distanciamento mínimo, mas o fato é que eu só fui saber mais sobre o tema (que me interessou sempre) depois de formada, e independentemente da ligação com a minha instituição de origem, a USP. Com as informações divulgadas pela CNV, eu e todos os brasileiros, temos a chance de corrigir esse lapso em nossa formação.
É possível saber mais e até mesmo baixar o relatório no link da CNV.
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sábado, 6 de dezembro de 2014
A viagem no tempo de Lélio, que viu a molha na velhinha ...
Corpo de Bale e de temporalidades ... aqui a viagem do tempo de Lélio, coisa muito linda:
"(...) A chã, por onde ia, descambava; Lélio pensou 'Daqui vou dar numa vereda..."
Andou embebendo tempo.
E vai, a solto, sem espera, seu coração se resumiu: vestida de claro, ali perto, de costas para ele, uma moça se encurvava, por pegar uma coisa no chão. Uma mocinha. Ela também escutara seus passos, porque se reaprumou, a meio voltando a cara, com a mão concertava o PANO VERDE NA CABEÇA, E - só a voz - baixinho ao natural, como se estivesso conversando sozinha, num simples de delicadeza : - '... goiabeira, lenha bôa: queima mesmo verde, mal cortada da árvore...' - mas a voz diferente de mil, salteando co uma força de sossego. Era um estado - sem surpresa, sem repente - durou como um rio vai passando. (...) Lélio não se sentia, achou que estava ouvindo ainda um segredo, parece que ela perguntava, naquele tom requieto, que lembrava um mimo, um nino, ou um muito antigo continuar, ou o a-pio de pomba-rola em beira de ninho pronto feito: - 'Você é arte-mágico?...Viu riso, brilho, uns olhos - que tivessem de chorar, de alegria,só era que podiam... -; e mais ele mesmo nunca ia saber, nem recordar ao vivo exato aquele vazio de momento .(...) E era nela que seus olhos estavam.
Mas ela era uma velhinha! Uma velha ... Uma senhora." A Estória de Lélio e Lina – João Guimarães Rosa .
"(...) A chã, por onde ia, descambava; Lélio pensou 'Daqui vou dar numa vereda..."
Andou embebendo tempo.
E vai, a solto, sem espera, seu coração se resumiu: vestida de claro, ali perto, de costas para ele, uma moça se encurvava, por pegar uma coisa no chão. Uma mocinha. Ela também escutara seus passos, porque se reaprumou, a meio voltando a cara, com a mão concertava o PANO VERDE NA CABEÇA, E - só a voz - baixinho ao natural, como se estivesso conversando sozinha, num simples de delicadeza : - '... goiabeira, lenha bôa: queima mesmo verde, mal cortada da árvore...' - mas a voz diferente de mil, salteando co uma força de sossego. Era um estado - sem surpresa, sem repente - durou como um rio vai passando. (...) Lélio não se sentia, achou que estava ouvindo ainda um segredo, parece que ela perguntava, naquele tom requieto, que lembrava um mimo, um nino, ou um muito antigo continuar, ou o a-pio de pomba-rola em beira de ninho pronto feito: - 'Você é arte-mágico?...Viu riso, brilho, uns olhos - que tivessem de chorar, de alegria,só era que podiam... -; e mais ele mesmo nunca ia saber, nem recordar ao vivo exato aquele vazio de momento .(...) E era nela que seus olhos estavam.
Mas ela era uma velhinha! Uma velha ... Uma senhora." A Estória de Lélio e Lina – João Guimarães Rosa .
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Para dar significado para uma longa vida inteira o escritor tem que ser maior, como Rosa - o que escrevia para 700 anose há 35 anos fazendo viver, apesar de "toda a coisa ruim que acontece acontecendo" :
"E então Migulim saíu. Foi ao fundo da horta, onde tinha um brinquedo de rodinha-d'água - sentou o pé, reventou. Foi no cajueiro, onde estavam pendurados os alçapões de pegar passarinhos, e quebrou todos. Depois veio, ajuntou os brinquedos que tinha, todas as coisas guardadas - os tentos de olho-de-boi e maria-preta, pedra de cristal preto uma carretilha de cisterna, um besouro verde com chifres, outro grande, dourado, uma folha de mica tigrada, a garrafinha vazia, o couro de cobra-pinima, a caixinha de madeira de cedro, a tesourinha quebrada, os carretéis, a caixa de papelão, os barbantes, o pedaço de chumbo, e outras coisas, que nem quis espiar - e jogou tudo fora, no terreiro. Queria ter mais raiva. Mas o que não lhe deixava a ideia era o casal de tico-ticos-reis, o macho tão altaneirozinho bonito – upupava aquele topete vermelho, todo, quando ia cantar. Migulim tinha inventado de pôr a peneira meia em pé, encostada num toquinho de pau, amostrara arroz por debaixo, e pôde ficar de longe, segurando a pontinha de embira que estava lá amarrada no toquinho de pau, tico-tico-rei veio comer arroz, coração de Migulim também, também, ele tinha puxado a embira... agora chorava. " Campo Geral – João Guimarães Rosa
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sexta-feira, 5 de dezembro de 2014
Natural de criança é criar !
Creche retira brinquedos e crianças inventam um mundo à parte com o que lhes restou disponível... isso é típico de crianças. Confira neste texto retirado do Catraca Livre, disponível no link.
"Jardim de Infância na Noruega retira brinquedos das salas; o resultado foi crianças mais criativas
Redação em
Um jardim de infância norueguês decidiu eliminar todos os brinquedos das salas. O resultado foi crianças muito mais criativas para brincar e criar.
As crianças tinham a disposição apenas caixas de papelão, mantas, tecidos, as almofadas do sofá, mesas e cadeiras. No lado de fora, apenas os aparelhos doplayground e a natureza.
Logo depois da mudança observou-se que as crianças usaram mais a imaginação para criar adereços que precisavam durante as brincadeiras. As agulhas se transformaram em espadas, caixas de papelão eram barcos e folhas eram dinheiro.
Outro ponto foi que os conflitos entre as crianças reduziram e se tornou mais fácil para todas as crianças brincarem. Afinal, se tudo era imaginado, ninguém era dono de nada.
O projeto foi tão bem sucedido que a creche vai provavelmente continuar a ter períodos livres de brinquedo. Especialmente do lado de fora das classes.
As crianças não reclamaram da experiência nem expressaram saudades do brinquedo, segundo a diretora."
É natural de crianças criar e recriar o mundo em que vivem, como sabemos. Não me espanta a principal reação de acolhimento delas a proposta.Que elas não tenham reclamado eu não estranho, mas pelo meno se espantado era de se esperar... mas não sei como funciona o esquema de propaganda para as crianças lá, aqui seria impensável que nenhuma reclamasse...
De qualquer forma, fica a dica.
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Uma leitura de pintura de Van Gogh...
"Mesmo exausto, tomo o metrô para a cidade vazia e, da estação central, subo no primeiro bonde para o Van Gogh Museum, onde me defronto com a tela pintada em vésperas da morte do artista: aves negras que preenchem galhos secos e dão vida à árvore. Mas, nas extremidades, uns primeiros corvos alçam vôo, mostrando o vazio do outono." Arnaldo Bloch. "Os irmãos Karamabloch", p. 25
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quarta-feira, 26 de novembro de 2014
Mick Jagger por Tom Zé
Este artigo escrito por Tom Zé está disponível aqui e copio para deleite geral.
O sêmen de Jagger e a perpetuação da raça
rock and roll
"Mick Jagger diz que tentou imitar no palco a dança de
James Brown. Mas seu movimento que mais me chama a atenção são as caminhadas
altivas e longas, peito erguido, cabeça levantada, em que ele, lindo como
cavaleiro da Coroa e orgulho da raça, lembra um Ricardo III que seja
homem-e-cavalo de uma só vez. E lá vai o carteiro, atávico cavalo-estafeta,
indo e vindo por toda a extensão do palco, sem pausa, levando e trazendo
notícias de toda e para toda a parte. O rock foi uma grande notícia sobre a
Terra. Imprimiu transformações na vida e nos costumes. Notícias como as que
destruíram os cinemas americanos na estreia do inesquecível No Balanço das
Horas, em que Bill Halley tocou o estonteante Rock around the clock (Deus tenha
piedade de nós).
Apesar de guerreiro destruidor, o rock não é tão
pessimista quanto a obra Angelus, de Paul Klee, porque, gostem ou não os
conservadores, ele, mesmo avassalador, contém em seu ventre a semente para
substituir o que foi.
Mickavalo Jagger é, mais que a enfraquecida Rainha Elizabeth
e que o opaco príncipe herdeiro, o Cavaleiro que mantém um pouco do prestígio
mundial que envolvia o Império Britânico, hoje contraído e despojado de Jagger.
E assim segue o Cavaleiro em diversas frentes: 1) Recompõe, pela canção, parte
da presença do Império e abarrota os cofres da Coroa com direitos autorais,
pondo na boca e no coração do Planeta trovas e canções de fonte de inspiração
britânica. 2) Empenha-se na tarefa de espalhar o seu sêmen imperial, mantendo
um harém descontínuo nos cinco continentes, gerando filhos que se tornam
conhecidos ou não – a depender das conveniências sociais de cada uma das régias
concubinas eleitas.
Estas, numa função tão importante para a Coroa, são
criaturas escolhidas com esmero. Sir Jagger não sairia por aí espalhando o
régio sêmen a não ser na cavidade adequada das moças mais geneticamente
promissoras, transformando o prazer pessoal numa experiência geradora que venha
apurar a descendência do Rei Artur e de sua Távola Redonda. O harém imperial
merece mais considerações técnicas. É criado com feições e estratégias de uma
guerra de guerrilha. Não há quartel estabelecido, não há soldados fardados que
possam de antemão ser reconhecidos, não se sabe dia, país ou hora em que o
harém vai se instalar. Os detalhes ficam a cargo do feeling do cavaleiro
Jagger.
Ele tem de possuir no olho um verdadeiro laboratório de
avaliação genética que, com o ‘glimpse’ de um raio, identifique entre as moças
que tiveram a astúcia e habilidade de passar pela segurança e chegar ao seu
camarim qual seria uma parceira adequada para a procriação que, ali mesmo, num
canto de banheiro, atrás de alguma porta, ou num fortuito corredor, possa ser a
depositária do régio sêmen, passando a ter a responsabilidade de gerar um
descendente digno de Galahad, Lancelote, Palamedes, Percival e de todas as
Távolas e possessões.
No passado, os poderosos do governo britânico diziam que
seu império era tão extenso que, com sua imensidão, “o sol nunca se punha”. Nos
dias atuais do império enfraquecido, só o harém de Mick Jagger tem cacife para
repetir o provérbio."
Ai você lembra da Christina Anguilera : " You want the moves like jagger " rs
Ai você lembra da Christina Anguilera : " You want the moves like jagger " rs
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domingo, 23 de novembro de 2014
"...UMA PENA DESPERTÁ-LA SEM ARRULHOS..."
"Rosa Cabarcas tinha me aconselhado a tratar a menina com cuidado, pois ela ainda sentia um resto do susto da primeira vez. E tem mais: acho que a própria solenidade do ritual havia agravado o medo e tinha sido preciso aumentar a dose de valeriana, pois dormia com tal placidez que teria sido UMA PENA DESPERTÁ-LA SEM ARRULHOS. Assim comecei a secá-la com a toalha enquanto cantava para ela em sussurros a canção de Delgadina, a filha mais nova do rei, requerida de amores pelo pai. À medida que secava ela ia me mostrando os flancos suados ao compasso do meu canto :'Degaldina, Degaldina, tu serás minha prenda amada'. Foi um prazer sem limites, pois ela tornava a suar por um lado quando eu acabava de secá-la pelo outro, para que a canção não terminasse nunca. 'Levanta, Degaldina, ponha tua saia de seda' , eu cantava junto ao seu ouvido. No final, quando os criados do rei a encontraram morta de sede em sua cama, achei que minha menina estava a ponto de despertar ao escutar o nome. Então, essa era Degaldina.
Voltei para a cama com minha cueca de beijos estampados e me estendi ao lado dela. Dormi até às cinco ao acalanto de sua respiração apaziguada." Gabriel García Márquez . Memória de minhas putas tristes, p. 64
Mas que beleza de narrativa! É um trecho da segunda noite que o nonagenário passa ao lado da garota virgem adormecida, a influência do Kawabata é muito forte pela valeriana e tudo mais, e eu nem comento que no livro do Gabo, o velho sabe que a mocinha virgem passa o dia todo em seu trabalho FIANDO e que tem muito medo de que seu trabalho lhe arranque algum SANGUE ( aqui, referências diretas à Bela Adormecida), mas mais que isso... ele não queria deixá-la sem arrulhos (que é uma das formas de se chamar a canção de ninar), por isso ele canta para ela continuar dormindo como se a canção 'não terminasse nunca' e ela continuasse acalentando também o seu sono com sua 'respiração apaziguada' ...
Estou adorando !
quinta-feira, 20 de novembro de 2014
Orelha do livro "Memórias de minhas putas tristes", de Gabriel García Márquez
"É apenas na aparência que inesperada e surpreendente história de amor entre um ancião e uma ninfeta se insere numa tradição da qual fazem parte o VladimirNabokov de Lolita, o Thomas Man de Morte em Veneza e o Yasunari Kawabata de A Casa das belas adoormecidas, ainda que este último tenha sido citado na epígrafe de Memórias de minhas putas tristes e fornecido o mote a partir do qual o escritor colombiano Gabriel García Márquez pôs fim a um período de dez anos longe dos romances.
Um leitor mais atento vai encontrar aqui as principais referências e motivações desse hino de louvor à vida e, por extensão, ao amor, já que um não exite sem o outro no imaginário do Prêmio Nobel de Literatura de 1982. Apesar de parecer estranho, uma dessas chaves está no conto de fadas A Bela Adormecida, que não por acaso, é citado em um momento cruial da narrativa ambientada em uma cidade colombiana imaginária, numa época que de tão remota parece imemorial.
A semelhança com a famosa fabula do escritor francês Charles Perrault fica mais explícita na adolescente , que aqui surge dormindo, como se estivesse a espera de seu príncipe encantado. Mas ela também está presente no velho jornalista, narrador dessas memórias, que vai viver cerca de cem anos de solidão embotado e embrutecido, escrevendo crônicas e resenhas maçantes para um jornal provinciano, dando aulas de gramática para alunos tão sem horizontes quanto ele, e, acima de tudo, perambulando de bordel em bordel, dormindo com mulheres descartáveis.
Só quando acorda ao lado da ainda pura ninfeta. Degaldina é que este personagem vai ganhar a humanidade que lhe faltou enquanto fugia do amor como se estivesse atrás de si um dos generais que se revezam no poder da mítica Colômbia de Gabriel García Márquez. O medo do amor é tão superlativo que o anti-herói dessas memórias vai preferir conviver com a mais terrível ameaça para o macho latino: o fantasma da impotência. E enquanto tivesse forças, resistiria ao poder do amor.
Parte desse medo se deve aos ridículos a que o amor nos expõe, aqui elevado à última potência em cenas como a que o ancião anda numa bicicleta cantando 'com ares de grande Caruso', ou aquela em que destrói um quarto de bordel. E por mais que lidemos com esse sentimento como se fosse um paletó dois números acima do nosso, apenas ele e tão-somente ele, o amor, nos faz humanos, como desde tempos imemoriais a arte vem tentando provar. Seja nos boleros mais sentimentais, que ressoam nas paixões evocadas pelos grandes mestres da ficção, ou em obras-primas como esta. "
(texto da orelha do livro "Memórias de minhas putas tristes", de Gabriel García Márquez)
Um leitor mais atento vai encontrar aqui as principais referências e motivações desse hino de louvor à vida e, por extensão, ao amor, já que um não exite sem o outro no imaginário do Prêmio Nobel de Literatura de 1982. Apesar de parecer estranho, uma dessas chaves está no conto de fadas A Bela Adormecida, que não por acaso, é citado em um momento cruial da narrativa ambientada em uma cidade colombiana imaginária, numa época que de tão remota parece imemorial.
A semelhança com a famosa fabula do escritor francês Charles Perrault fica mais explícita na adolescente , que aqui surge dormindo, como se estivesse a espera de seu príncipe encantado. Mas ela também está presente no velho jornalista, narrador dessas memórias, que vai viver cerca de cem anos de solidão embotado e embrutecido, escrevendo crônicas e resenhas maçantes para um jornal provinciano, dando aulas de gramática para alunos tão sem horizontes quanto ele, e, acima de tudo, perambulando de bordel em bordel, dormindo com mulheres descartáveis.
Só quando acorda ao lado da ainda pura ninfeta. Degaldina é que este personagem vai ganhar a humanidade que lhe faltou enquanto fugia do amor como se estivesse atrás de si um dos generais que se revezam no poder da mítica Colômbia de Gabriel García Márquez. O medo do amor é tão superlativo que o anti-herói dessas memórias vai preferir conviver com a mais terrível ameaça para o macho latino: o fantasma da impotência. E enquanto tivesse forças, resistiria ao poder do amor.
Parte desse medo se deve aos ridículos a que o amor nos expõe, aqui elevado à última potência em cenas como a que o ancião anda numa bicicleta cantando 'com ares de grande Caruso', ou aquela em que destrói um quarto de bordel. E por mais que lidemos com esse sentimento como se fosse um paletó dois números acima do nosso, apenas ele e tão-somente ele, o amor, nos faz humanos, como desde tempos imemoriais a arte vem tentando provar. Seja nos boleros mais sentimentais, que ressoam nas paixões evocadas pelos grandes mestres da ficção, ou em obras-primas como esta. "
(texto da orelha do livro "Memórias de minhas putas tristes", de Gabriel García Márquez)
terça-feira, 18 de novembro de 2014
Ver: Amor, novamente ...
Sempre achei estranhíssima minha história com "Ver: Amor", livro que passou por mim como um trator ... claro que é um ótimo livro, Grossman é excelente escritor , mas a minha reação ao livro é forte demais, o que tem ali que me desmonta mil vezes?
Mais estranho é que, mesmo eu sempre me perguntando isso, nunca tinha procurando nenhum texto sobre o livro até esta tarde na biblioteca... achei artigos da professora Bertha Waldman. Foi avassalador!
Como eu já falei aqui, me atrai especialmente a relação do menino Momik com o Vovô Vassaman (um sequelado, sobrevivente de campo de concentração)... ao Bertha escreve:
"O Vassaman de Momik não é só um personagem; é a própria história, um ser de linguagem, e por isso, não pode morrer. Apesar de alvejado tantas vezes, Vassaman não consegue morrer.” Betha Waldman
Que ele era a narrativa eu tinha percebido, tem momentos que ele é Sherazade e tudo, mas a história... que demais, que demais! Tem, também, um depoimento de Grossman que me levou às lágrimas no ônibus, com trechos assim:
"... para mim, 'Ver:Amor', que é uma história a respeito da Shoá, não é em absoluto uma história a respeito da morte, mas, de fato, uma tentativa de entender a própria vida. E o que nos perturba tanto é poque a Shoá pôde ocorrer do modo que ocorreu. Porque talvez, assim me parece, o assassinato maciço e anônimo pôde ocorrer de forma tão eficiente apenas em um mundo em que a própria vida, a ideia de vida de humanidade, tornou-de algo anônimo, sem sentido, vazio,"
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quinta-feira, 6 de novembro de 2014
Escrita de si, escrita da história
"(Estudos da 'História da vida privada') indicam, de múltiplas formas, o vínculo existente entre espaço de grande investigação histórica - aquele do privado, de onde deriva a presença das mulheres e dos homens 'comuns' - e os novos objetos, metodologias e fontes que se descortinam diante dele . É justamente neste espaço privado, que de forma alguma elimina o público, que avultam em importância as práticas de uma 'escrita de si'. (GOMES, Angela de Castro. "Escrita de si, escrita da história: a título de prólogo ". In: GOMES, Angela de Castro (org). Escrita de si, escrita da história. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004, p. 10)
Leia a introdução do livro na íntegra Aqui.
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quarta-feira, 5 de novembro de 2014
Mapa de Berlim de Walter Benjamin
"Quando eu estiver velho, gostaria de ter no corredor da minha casa
Um mapa Pharus de Berlim
Com uma legenda
Pontos azuis designariam as ruas onde morei
Pontos amarelos, os lugares onde moravam minhas namoradas
Triângulos marrons, os túmulos
Nos cemitérios de Berlim onde jazem os que foram próximos a mim
E linhas pretas redesenhariam os caminhos
No Zoológico ou no Tiergarten
Que percorri conversando com as garotas
E flechas de todas as cores apontariam os lugares nos arredores
Onde deliberava sobre as semanas berlinenses
E muitos quadrados vermelhos marcariam os aposentos
Do amor da mais baixa espécie ou do amor mais abrigado do vento"
(Walter Benjamin)
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sábado, 1 de novembro de 2014
terça-feira, 28 de outubro de 2014
domingo, 26 de outubro de 2014
Reencarnação de Buda?
Mais um trecho de "A casa das belas adormecidas", de Yasunari Kawabata:
"...não era difícil imaginar que esses velhos, do ponto de vista mundano, deviam ser vencedores na vida, e não fracassados. Contudo devem ter conseguido alguns êxitos cometendo o mal, e preservando seus sucessos a custo de males acumulados. Então, eles não teriam paz de espírito, pelo contrário, estariam se sentido derrotados e aterrorizados. Quando se deitavam em contato com a nudez da jovem mulher, os sentimentos que ressurgiam do fundo dos seus âmagos talvez não fossem apenas o medo da morte que se aproximava ou o lamento pela juventude perdida. Talvez houvesse neles também certo arrependimento pelos pecados cometidos, ou pela infelicidade do lar, coisa muito comum nas famílias dos vencedores. Decerto os vencedores não possuíam seu Buda, diante do qual pudessem ajoelhar-se e orar. Por mais que abraçassem fortemente a bela desnuda, derramassem lágrimas frias, se desmanchassem em choro convulsivo ou berrassem, a garota nada ficaria sabendo e jamais acordaria. Os velhotes não haveriam de se envergonhar,nem ficariam com seu orgulho ferido. Estavam inteiramente livres para se arrepender e lamentar à vontade. Consideradas dessa forma, seriam as ‘belas adormecidas’ uma espécie de Buda? E, além de tudo, um Buda vivo? A pele o cheiro jovem das garotas seriam, então, o perdão e o consolo desses pobre velhotes. “ Yasunari Kawabata - A casa das belas adormecidas, p.80-1PS. Direto da Wikipédia:"Buda (sânscrito-devanagari: बुद्ध, transliterado Buddha, que significa "Desperto"1 , do radical Budh-, "despertar") é um título dado na filosofia budista àqueles que despertaram plenamente para a verdadeira natureza dos fenômenos e se puseram a divulgar tal descoberta aos demais seres. "A verdadeira natureza dos fenômenos", aqui, quer dizer o entendimento de que todos os fenômenos são impermanentes, insatisfatórios e impessoais. Tornando-se consciente dessas características da realidade, seria possível viver de maneira plena, livre dos condicionamentos mentais que causam a insatisfação, o descontentamento, o sofrimento."
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quarta-feira, 22 de outubro de 2014
Um adeus a Nicolau Sevcenko, por Elias Thomé Saliba
Este texto e a imagem foram retirados da revista Carta na Escola e também está disponível neste link.
Um adeus a Nicolau Sevcenko
Irrepreensível na pesquisa e elegante no estilo, obra do historiador é um diálogo com a razão e com os sentimentos.
Por Elias Thomé Saliba
Em relação ao passado e à história experimentamos frequentemente duas atitudes diversas: aquela espécie de curiosidade intelectual, que nos leva a perguntar “como realmente ocorreram as coisas” ou uma inquietação nostálgica, que nos leva a acreditar que, como dizia Goethe, “o melhor da história é o entusiasmo que ela inspira”. A obra do historiador Nicolau Sevcenko (1952-2014) é destinada tanto àqueles leitores com inquietações intelectuais quanto aos nostálgicos pelo passado, ansiosos por reencontrar ou evocar suas próprias experiências intelectuais e afetivas.
Arthur Friedenreich, filho de imigrante alemão com uma ex-escrava, foi o maior artilheiro futebolístico brasileiro no ano de 1920. Naquele mesmo ano, Edu Chaves venceu o maior desafio aéreo sul-americano, percorrendo pela primeira vez a rota Buenos Aires-Rio de Janeiro num avião pintado com as cores da bandeira paulista. Qual a relação desses dois eventos esportivos com a história brasileira no início do século XX?
A revolução tecnológica, o crescimento explosivo das grandes metrópoles e as alterações no comportamento coletivo após a Primeira Guerra Mundial criaram um novo cenário para esses, os novos heróis. Não mais as celebridades da palavra e do pensamento reflexivo como Rui Barbosa ou o Barão do Rio Branco mas, sim, as estrelas da energia física, do esporte competitivo, do movimento e da velocidade.
Revelando uma original capacidade de articulação entre a cultura internacional e a brasileira, esta é uma, entre muitas, das mais importantes e originais contribuições de Sevcenko para a cultura brasileira, no livro Orfeu Extático na Metrópole, de 1982.
O fluxo intenso de mudanças em escala mundial, que se concentrou de fins do século XIX até meados do século XX, envolveu, de forma completa e rápida, todas as pessoas, alterando dramaticamente seus hábitos cotidianos, suas convicções, seus modos de percepção e até mesmo seus reflexos instintivos.
O mundo, após a Primeira Guerra (1914-1918), gerou uma inédita forma de mobilização coletiva: em lugar da razão e da palavra, o universo imprevisível da ação que inaugurava uma curiosa espécie de cidadania fundada na emotividade.
Músico prodigioso e sedutor, Orfeu, na mitologia grega, era louvado como celebrante dos rituais de exaltação e êxtase coletivo. Como historiador de rara sensibilidade, Sevcenko serve-se da metáfora de Orfeu como inspiração para traçar um vigoroso painel da história brasileira nos anos 1920.
Do balé ao jazz, do cubismo ao futurismo, dos mitos fascistas à patafísica de Alfred Jarry, o historiador consegue captar com surpreendente versatilidade a forma como os registros literários e artísticos sintonizavam essa fragmentação e esse desenraizamento generalizados.
No final do livro, a narrativa retorna à cena urbana paulista, desdobrando-se em três acontecimentos, nos quais se exercitaram aquela mobilização e ritualização coletivas: 1922, a cena dos mártires na Revolta do Forte de Copacabana; 1924, quando São Paulo, a bela capital cosmopolita, foi bombardeada após a invasão das tropas federais; e 1930, quando Getúlio Vargas vem a São Paulo e foi (surpreendentemente para o próprio Vargas) saudado por uma imensa multidão.
O historiador já trilhava aí a senda aberta pelo seu primeiro livro, Literatura como Missão, de 1983, um estudo pioneiro, no qual se dedica a rever a história cultural brasileira a partir das obras de Euclides da Cunha e Lima Barreto. Pioneiro na abordagem, porque a criação literária não mais é vista como mero reflexo mecânico da história, mas como um conjunto vivo de práticas e eventos. A literatura revela todo o seu potencial como documento, não apenas pelas referências esporádicas a episódios históricos ou pela beleza de suas criações estilísticas, mas como um universo complexo que incorpora a história em todos os seus aspectos.
Com olhares simultâneos – um na história social e outro na história da cultura –, Nicolau Sevcenko acaba desvelando o quanto a literatura da época transformou-se naquele “testemunho triste, porém sublime, dos homens que foram vencidos pelos fatos”.
Rejeitando a concepção tradicional de História, que a concebe como fluxo evolutivo, genético ou finalista, a abordagem de Sevcenko consistiu no esforço de olhar a realidade com desprendimento, considerando toda singularidade histórica como objeto de conhecimento de igual relevância. É o que notamos no livro A Revolta da Vacina: Mentes insanas em corpos rebeldes, cuja primeira edição é de 1983, uma das primeiras e mais sólidas reconstruções desse capítulo pouco conhecido da história brasileira. O que não impediu o historiador de realizar uma interpretação engajada e crítica: a República brasileira pretendeu inaugurar uma sociedade liberal e democrática, mas acabou não só excluindo a maioria da população, como tratando-a com desmedida violência. Ou, na frase definitiva de Lima Barreto, a “república apenas democratizou a senzala”.
Já o livro A Corrida para o Século XXI catalisa os temas mais caros da obra do historiador: a avaliação dos custos irredimíveis da modernidade ao provocar o esgarçamento da solidariedade e anular as energias críticas do indivíduo. A aceleração da vida, que Sevcenko compara ao loop de uma montanha-russa, altera radicalmente o quadro de valores da sociedade.
Publicado em 2001, o livro ainda conserva uma estranha atualidade, pois antecipa os imperceptíveis efeitos da comunicação digital. Nas grandes metrópoles, todos vieram de algum lugar, portanto, ninguém conhece ninguém, são tantos e estão tão ocupados que a forma prática de conhecer os outros é pela maneira com que se vestem, pelos objetos simbólicos que exibem, pelo seu comportamento. A comunicação básica entre as pessoas é toda ela externa e baseada em símbolos exteriores. Como esses códigos mudam com extrema rapidez, ingressamos, sem o saber, no efêmero império das modas. Toda a comunicação humana não se concentra mais nas qualidades humanas da pessoa, mas nas mercadorias que ela ostenta ou nos objetos que possui.
Irrepreensível na pesquisa e elegante no estilo, toda a obra de Nicolau Sevcenko, tristemente inconclusa em face do seu precoce desaparecimento, é um diálogo com a nossa razão e com os nossos sentimentos. Como sabem as centenas de alunos de seus cursos e palestras, ele sempre atraiu e sempre atrairá muitos leitores porque conseguiu o raro feito de captar aquele ponto da vida humana, onde se cruzam experiências vividas com expectativas de experiências futuras. Aquela encruzilhada da vida que constitui o maior prêmio à nossa memória e na qual passado e presente se projetam no futuro. Ou, como dizia T.S. Eliot, aquela esquina quase desconhecida, onde “tempo presente e tempo passado são ambos presentes no tempo futuro”.
Publicado na edição 91, de outubro de 2014
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domingo, 19 de outubro de 2014
As fantasias femininas e os homens...
"...um outro episódio, talvez menos importante, foi aquele em que Eguchi,ainda moço, ouvira em confidência a esposa de um dos diretores de certa empresa de destaque, uma mulher de meia-idade, uma mulher que detinha fama de 'esposa exemplar', com um vasto círculo de relações.
- A noite, antes de pegar no sono, eu fecho os olhos e tento contar os homens pelos quais gostaria de ser beijada. Eu os conto dobrando os dedos. É tão divertido! E se não consigo contar dez, sinto uma tristeza. (...) falara apenas em contar, mas ele desconfiava que, enquanto contava, ela evocava o corpo e o rosto desses homens, remexendo sua fantasia e demorando um tempo considerável para contar até dez. Ao pensar nisso, o perfume de apelo afrodisíaco dessa mulher que já passara um pouco de sua plenitude de repente atingiu com força o olfato de Eguchi. O que ela evocaria a respeito dele antes de adormecer, como um dos homens por quem desejaria ser beijada, era sua liberdade secreta e não dizia respeito a Eguchi que, não podia evitar isso e se defender, nem podia reclamar. Mas parecia-lhe que, sem saber, tornara-se um brinquedo na imaginação daquela mulher de meia - idade, e isso lhe provocou a sensação de indecência. Mesmo assim, até agora não conseguia esquecer as palavras dela. " Yasunari Kawabata. "A casa das belas adormecidas"
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sábado, 18 de outubro de 2014
O apressado
Gente, hoje eu passei quase o dia todo no SESC Pompéia estudando... fico na sala de estudos lá de cima, sozinha, lendo, pensando e, claro, filmando o entorno rsrs
Hoje um rapaz barbudinho me chamou a atenção porque entrou correndo com uma mochila, disparado mesmo e subiu até onde eu estava, mas na parte da frente a mim.eu fiquei sentada em um canto e ele foi para o outro extremo, até longe, mas como não havia nada nem ninguém entre nós, pude observar melhor. Logo percebi que ele ia trabalhar, por isso correu tanto, que usava óculos e era bastante agitado. Uma hora ele me surpreendeu mesmo, porque simplesmente tirou a blusa que usava (nada demais, claro), mas eu não esperava que ele fizesse isso naquela hora, entende? Não na frente dos meus olhos de voyeur... foi mágico! Mas logo ele colocou uma camiseta, um uniforme (ele deve ser monitor da exposição que estava acontecendo ou algo assim). Então ele pegou na mochila uma tangerina e começou a descascar e comer, vagarosamente, como se oferecendo a si mesmo aquele simples prazer. E me oferecendo também. Ai chegaram os outros iguais a ele, meninos e meninas com o mesmo uniforme, então ele sumiu na multidão de uniformizados, tão rápido quanto chegou, como algumas coisas na vida da gente.
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sexta-feira, 17 de outubro de 2014
Caminhos da memória
"... mesmo que falasse de passado muito distante, talvez, no ser humano, a memória e reminiscências não pudessem ser definidas como próximas ou distantes unicamente por ser sua data antiga ou recente. Pode acontecer que, mais do que o dia de ontem, os acontecimentos da infância, sessenta anos atrás, tenham ficado guardados na memória e fossem recordados de uma forma mais nítida e mais viva. Isso não acontece com mais frequência na velhice? Além disso, não haveria casos em que os acontecimentos da infância contribuiriam para formar o caráter e dar direcionamento à vida de uma pessoa?.... " Yasunari Kawabata " A casa das belas adormecidas", p. 25
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quinta-feira, 16 de outubro de 2014
Carta a Chico Sá - Marilene Felinto
Carta a Chico Sá
Ou carta à presidenta Dilma Rousseff
MARILENE FELINTO
São paulo, 15/10/2014
Escrever para a Folha de S. Paulo não enobrece ninguém !
Pelo contrário, Chico. Mancha o nome da pessoa. Agora que você se demitiu desse jornal, por não poder expor sua opção política pela candidatura Dilma, vamos conversar. Aconteceu comigo também em 2001, quando da primeira eleição do Lula à presidência.
Quanto tempo faz? Eu também era o que se chamava de “colunista” de opinião do caderno Cotidiano. Quanto tempo faz? Mas, veja: a história não se repete agora nem como tragédia nem como farsa. A história se repete como descaramento, como safadeza mesmo, hipocrisia dessa mídia golpista.
Aconteceu também, há poucos anos, com Maria Rita Kehl, não foi? Se não me engano, no jornal O Estado de S. Paulo. Os dois “veículos de comunicação” pactuam de novo o complô censor e golpista. Lá no meu caso, em 2001, a coisa teve menos repercussão porque, afinal, não sou tão importante quanto você e Maria Rita. Além do que, você também é da TV, não? Um cara pop. Aparece muito mais, e tal. E Rita é uma personalidade intelectual do mais alto nível (além de loira, o que, já de cara, dá muito mais repercussão aqui no Sudeste racista!).
Olha, eu até queria que essa carta tivesse um pouco de repercussão (queria que chegasse na presidenta!). Mas vai ser mínima, cara. Talvez circule um pouco pelas redes sociais, minimamente, porque eu não me publico mais nem me divulgo. Então, não tenho repercussão nenhuma! E, agora, que não temos mais, nem você nem eu, a tribuna de um jornal tipo FSP, imagine, quem vai ler essa carta? (Gargalhe!). Kkkkkkkkkkkkk! Quem se importa, afinal, com essa “mer...” dessa Folha de S. Paulo? Quem precisa dessa “bos...” pra escrever ou publicar algo? Peço desculpas pelos palavrões, mas eu não aguento não. Como jornalismo é m mundo baixo, do qual me lembro com enjoo ainda hoje, evoca palavrões na minha fala.
Cara, nem sei porque escrevo pra você essa carta, se mal nos conhecemos. Falei com você umas três vezes na vida, talvez. E isso não é uma carta de solidariedade, não. Ninguém precisa de solidariedade porque deixou de escrever nesse jornal.
Escrevo talvez porque me deu uma enorme vontade de gargalhar quando soube que o caso se passa agora também com você. Gargalhar por causa da importância que ainda se dá a esse jornal e a outros, e à Rede Globo e às redes todas da mídia golpista. Cara, é muita gente querendo ainda escrever na Folha, aparecer na Folha, no Globo, na Globo, na pqp! É de intelectual a artista e político! É de secretário de governo a ministro, a prefeito e a assessor disso e daquilo! É por essas e outras que essa cambada de golpistas age como se fossem eles os donos do mundo, impunes que se sentem, protegidos pelo interesse econômico que representam!
Chamei esse texto aqui de “ou carta à presidenta Dilma” porque minha vontade era fazer chegar à presidenta um recado torto, e ao Lula também: gente, entendam de uma vez por todas que é preciso regular essa mídia brasileira! Que já demorou demais, que é pura covardia não peitar essa cambada de irresponsáveis. Demorou, presidenta! Presidenta Dilma Rousseff, é preciso garantir as liberdades comunicativas no país, é preciso pluralismo, democratização da mídia, liberdade de expressão! São 12 anos de acovardamento do PT! E eu sou petista, sim, desde sempre, desde então. Lula e você, Dilma, são ídolos meus! E olha que eu quase não tenho ídolos! Só Graciliano Ramos depois de vocês! Ou antes, melhor dizendo!
Chico. Escrever pra Folha de São Paulo não enobrece ninguém. Não traz renome. Pelo contrário: a pessoa chafurda ali na lama daquelas vaidades, das pequenas trapaças, das intrigas internas, das grandes e perigosas manipulações da informação. Aquilo é um mundo baixo, do qual me lembro com enjoo ainda hoje. E carrego pecha ainda maior: de ter sido amiga do dono, um erro de cálculo provocado pela cegueira e pela vaidade da juventude. Sempre fui péssima nas matemáticas da vida. Sempre só soube direito português, que não serve pra nada, afinal.
Chico. Em 2001, me chamaram por telefone lá daquele jornal, para dizer também que eu tinha feito “proselitismo político” pró Lula, e que o jornal, neutro (Gargalhe! Que fazia campanha aberta pro Serra), não aceitava aquilo. Gargalhemos novamente. E que, portanto, tudo o que eu escrevesse dali por diante passaria, antes de ser publicado, pelo escrutínio da “direção de redação”. E que, além disso, meu texto sairia apenas de 15 em 15 dias e não mais semanalmente como era. E que, portanto, meu salário também seria cortado pela metade!
Fiquei pasma! Pela ousadia da tal “direção de redação” chegar para uma pessoa e dizer uma barbárie dessa! E impor uma censura assim, descaradamente, presidenta! Censura é isto! Cadê a liberdade de expressão que eles exigem da senhora? Arrumei a trouxa e fui-me embora daquela “mer...”, com perdão da palavra.
Do lado de lá, a “direção de redação” também pasmou quando percebeu que eu, de fato, decidira largar aquilo de uma vez por todas depois de 12 anos! Devem ter achado que eu, por ser negra e pobre, dependente daqueles honorários de “mer...” que me pagavam, cederia a tamanha humilhação! Tentaram reverter, tentaram me convencer a ficar, dizendo que voltavam atrás nas condições, nos salários, talvez na “p...” da censura.
Não cedi não. E rompi com aquela gente. E prefiro hoje morrer de fome a ter que escrever uma linha que seja de autoria minha pra essa mídia golpista. Chico, certamente hoje você é uma pessoa melhor do que ontem. Transcrevo aqui o texto da “coluna” que foi o estopim do meu pedido de demissão naquela época (com o Lula já eleito, ao menos isso, graças a Deus, que eles não engolem até hoje!). Dedico de novo o texto ao ex-presidente Lula, a minha candidata à reeleição, Dilma Rousseff, e... a um terceiro ídolo, que eu lembrei que tenho: Marilena Chaui. A você, agradeço a oportunidade de tocar no assunto, com palavrão e tudo, como eu queria. Um abraço.
Marilene Felinto, 56, é escritora e tradutora, autora do romance AS Mulheres de Tijucopapo (1982), pelo qual recebeu o Prêmio Jabuti na categoria Revelação de Autor, entre outros livros. Trabalhou na imprensa de 1989 a 2006, na Folha de S. Paulo, Revista Caros Amigos, entre outras publicações.
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É proibido comemorar – Marilene Felinto
Texto escrito em 29/10/2002, quando da primeira eleição do Lula à presidência da República. Publicado na Folha de S. Paulo).
É PROIBIDO comemorar, mas eu vou comemorar: por minha tia Irene, pelo menos, que também perdeu parte de um dedo na máquina da fábrica de tecidos em Paulista (Grande Recife), nos anos 50. Paulista, Caetés, Buíque, está tudo ali, naquelas vilas perdidas do interior do país, onde tudo foi sempre seco, matuto, duro e difícil. Buíque (PE), vilarejo muito perto de Caetés (onde nasceu o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva), é onde o escritor Graciliano Ramos passou parte de sua infância, ele que nasceu em 1892 em Quebrangulo (Alagoas), no mesmo 27 de outubro que Lula.
E ele, Graciliano, que escreveu um romance chamado "Caetés" (1933) e outro chamado "São Bernardo" (1934), nome da cidade São Bernardo do Campo, onde o operário virou líder sindical. Está tudo ali. Está tudo aí, fazendo história universal, quase irreal, quase fictícia de tão surpreendente.
É proibido comemorar, mas eu vou comemorar: comemorar não uma pessoa, mas uma idéia, um símbolo. O povo elegeu sua própria cara mais profunda pela primeira vez. Isso é bom para a auto-estima do povo. Quem já experimentou o preconceito sabe _a discriminação por origem social, tão típica da estrutura da sociedade brasileira. É mais do que saudável que o poder mude de mãos: especialmente num país sempre dominado por uma elite sem nenhuma simpatia humana, de uma perversidade e de um egoísmo sem par no mundo.
É proibido comemorar, mas eu vou comemorar: ao menos pela menina "Te", de quatro anos de idade, que conheci num casebre de taipa em Cruzeiro do Nordeste (município de Sertânia, a 350 km de Recife) em 2001. "Te" era o apelido dela que não tinha nome ainda, não tinha certidão de nascimento, não tinha nacionalidade, não tinha país, não existia para o Brasil e seu censo. Não merecia nenhuma simpatia humana da parte desses governantes insensíveis, eruditos urbanos empertigados ou usineiros exploradores. "Te" estava doente, eu acho. Não parava de chorar quando a conheci, a não-sei-que-nascimento na fila de uma carrada de sete filhos de um casal analfabeto, que passava o mês todo com os R$ 80 que o chefe da família então ganhava carregando estrume para fazendeiros da região. "Te" era apenas esse monossílabo, seminua, suja, talvez faminta chorando no meio da casa.
Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU: "Artigo 21 - 1. Toda pessoa tem o direito de tomar parte no governo de seu país, diretamente ou por intermédio de representantes livremente escolhidos."
É proibido comemorar, mas eu vou comemorar: por um raio de esperança ao menos para essas tragédias nordestinas, a de "Te", a de Lula, a de Irene (que morreu alcoólatra e empregada doméstica a um salário mínimo mensal), a minha mesma. Se eu fosse dez anos mais velha, talvez tivesse vindo para São Paulo sacolejando na mesma boléia de um pau-de-arara. Vim 15 anos depois de Lula, mas de ônibus, da viação São Geraldo ou Itapemirim, não me lembro. Tive mais sorte, vim na poltrona já estofada do ônibus, numa viagem que durou quatro dias, ao invés de 13. Tive mais sorte, fiz curso superior.
É proibido comemorar porque jornalistas não comemoram, criticam. Mas cada coisa a seu tempo. Não faltarão críticas. Mais do que isso: há fascistas e neo-fascistas à espreita país afora. Farão de tudo para aterrorizar e destruir.
No momento, comemoro, faço do português o inglês (para o mundo entender) que me ensinaram por sorte na universidade _e digo como a atriz Marilyn Monroe disse ao presidente Kennedy, num dia de aniversário: "Happy birthday, Mr. President!", pelos mais de 50 milhões de votos.
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