sexta-feira, 17 de junho de 2016

Milton Nascimento relança álbuns 'Clube da Esquina' 1 e 2 - Lauro Lisboa Garcia (dez. 2007)

Este texto foi publicado no Estadão em 11 de dezembro de 2007 e está disponível neste link.

Milton Nascimento relança álbuns 'Clube da Esquina' 1 e 2
LAURO LISBOA GARCIA
11 Dezembro 2007 | 20h 25 - Atualizado: 11 Dezembro 2007 | 20h 41

O cantor lembra histórias de 35 anos atrás, ao reunir em caixa seus discos remasterizados
Milton Nascimento acaba de realizar o antigo desejo de grande parcela de seu público no Brasil e no mundo: reunir num box os dois álbuns Clube da Esquina. Lançados pela EMI-Odeon, em LPs duplos em 1972 e 1978, respectivamente, os dois discos antológicos voltam em três CDs, novamente remasterizados, com ganho de volume e eliminação de ruídos, entre outras melhorias. Veja também: Ouça trecho da entrevista  Ouça 'Canción por la Unidad de Latino America' Ouça 'Cais' Confira discografia completa   A primeira remasterização foi feita nos estúdios Abbey Road quando toda a fabulosa discografia de Milton naquela gravadora foi lançada em CD. Com vozes e instrumentos gravados separadamente em 24 canais, o Clube da Esquina 2 também possibilitou um bom trabalho de remixagem desta vez. O mesmo não foi possível fazer com o primeiro, já que no início dos anos 70 os estúdios brasileiros não eram tão sofisticados e o disco foi todo gravado em apenas dois canais. O processo de restauração foi conduzido por João Marcello Bôscoli, mas, ao contrário do que fez com Elis & Tom (1974), não interferiu na obra artística. As faixas continuam com os mesmos arranjos e tempo de duração, nenhuma sobra de estúdio foi acrescentada. Foi ouvindo o renovado Elis & Tom, aliás, que Milton decidiu recorrer a Bôscoli. "Fiquei louco com aquele som. Queria ter o mesmo nos meus discos", diz o cantor. Cada faixa retrabalhada e enviada pelo produtor a Milton ia sempre acompanhada de uma surpresa pela revelação de detalhes antes não percebidos. Havia, por exemplo, uma única intervenção de uma cuíca em Léo (parceria de Milton com Chico Buarque no Clube 2), que para ele era fundamental que se ouvisse, mas estava escondida.   Satisfeito com o resultado, Milton, em sua bela e acolhedora casa na Barra da Tijuca, lembra de detalhes da época dos dois discos. São muitas histórias interessantes (impossíveis de se contar na íntegra apenas nesta página), sempre ligadas aos amigos que ele aglutina em seus projetos desde o início da carreira. "Não sei trabalhar de outro jeito. Minha vida sempre foi um Clube da Esquina", afirma o que já sabem aqueles que acompanham sua vida artística.   Lô Borges   Os dois álbuns tiveram um amigo específico como catalisador: Lô Borges - embora os demais estivessem na mesma órbita. "Acho que tem muito a ver com as coisas que principalmente eu trouxe de Minas quando vim para o Rio. Ninguém tinha ouvido aquele tipo de música aqui, o que foi uma surpresa pra mim", lembra Milton. "Vim morar aqui, mas sempre ia a Belo Horizonte e tinha lá na casa dos Borges o conjunto que o Lô fez com os meninos da idade dele, tocando coisas dos Beatles. Achava fabuloso aquilo que eles faziam."   Passou o tempo, Milton voltou à casa dos Borges, cruzou com Lô e o chamou para beber algo num bar. Quando Lô, então com 16 anos, também pediu uma caipirinha para acompanhá-lo, foi que Milton se deu conta de que o futuro parceiro já não era mais criança. De volta à casa, passou a ouvir trechos de melodias que ele vinha compondo, tocando violão e piano. "Quando ele começou a fazer uns acompanhamentos no violão, aquilo me pegou a laço", lembra Milton, que passou a fazer solos em outro violão. Márcio Borges, irmão de Lô, de caderno na mão, ia fazendo anotações, enquanto a mãe dos dois chorava encostada na porta. Assim nasceu a canção Clube da Esquina (a primeira, que ele e Lô gravaram em duo no álbum Milton, de 1970).   O "clube" nunca existiu como tal, e passou a ganhar essa conotação a partir da canção. Nunca teve uma sede, era só a esquina debaixo da casa dos Borges, onde a rapaziada se reunia à noite para conversar, provocando reações pouco amigáveis da vizinhança. A bela letra da canção tinha dois sentidos e também refletia os anseios da juventude do País em relação ao futuro, naqueles anos da ditadura militar. "Tínhamos uma turma musical muito unida em Belo Horizonte, não havia competição, era uma doideira, a gente se encontrava todos os dias, todo mundo compondo. Estava uma febre lá, mas o que me tocou mais naquele tempo eram as coisas que o Lô fazia."   Depois de Milton convencer Lô a se mudar para o Rio, foi a vez de ambos trazerem Beto Guedes. A idéia de fazerem um disco duplo juntos, chamando amigos não só mineiros, foi recusada pela Odeon, da qual Milton já era contratado. "Ficou um negócio muito chato, porque eu queria de qualquer jeito e não faria outra coisa. Era o momento."   Havia, porém, na diretoria da gravadora Adail Lessa, conhecido como "o amigo dos músicos". "É um cara que a gente tem de falar muito nele porque tem uma história de vida fantástica. Ele tinha feito uma coisa que quase ninguém sabe. Quando apareceu João Gilberto com aquela batida, o Tom Jobim e tal, foram na Odeon e os caras não quiseram gravar", lembra Milton. Foi Lessa quem bancou. Arrumou um horário de gravação escondido na madrugada, chamou orquestra, colocou João e Tom no estúdio e fizeram Chega de Saudade. "No dia seguinte, quando todo mundo chegou ele mostrou a gravação e foi aquele negócio." Nada menos que a pedra fundamental da bossa nova.   Mineiros   Por sorte dos mineiros, Lessa ainda estava lá. A resistência vinha não só do fato de Lô ainda não ser conhecido, mas por se tratar de um álbum duplo (que na versão em CD coube num só), algo inédito no Brasil. Com a demora pela decisão, Clube da Esquina perdeu o título de pioneiro no formato para Fa-tal - Gal a Todo Vapor, de Gal Costa. A capa também ousava por estampar apenas uma foto, feita por Cafi, de dois meninos desconhecidos (um branco e um preto que simbolizavam Lô e Milton, cujos nomes só constavam na contracapa). Mas o que provocou mais espanto, lembra Milton, foram as harmonias. "Não tinha em lugar nenhum harmonias como a gente fazia. Foi algo, digamos, sem precedentes."   Quando saiu o disco, a imprensa não poupou Lô Borges. "Todo mundo novo que chegava eles desciam a lenha. Foi assim comigo também, quando cheguei. Diziam que música brasileira era samba e o que eu fazia não era samba. Eu fazia tudo, nunca planejei nada, saía."   Sem querer, Milton acabou fazendo mais uma provocação: convidou Alaíde Costa para cantar o samba de carnaval Me Deixa em Paz (de Monsueto e Ayrton Amorim), em arranjo nada carnavalesco, nada tradicional. Além desta, havia outra canção, dentre as 21 faixas, fora do eixo mineiro: Dos Cruces (Carmelo Larrea Carricarte). Saudado até hoje como um mais importantes e influentes da música brasileira moderna, o disco lançou clássicos de Milton como San Vicente, Cais, Cravo e Canela, Nada Será Como Antes, e os maiores sucessos de Lô: Paisagem da Janela, O Trem Azul (depois gravada por Elis Regina, Tom Jobim e outros), Tudo Que Você Podia Ser, Um Girassol da Cor do Seu Cabelo. Não é pouco.

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