domingo, 23 de julho de 2023

A estória contra a História: "AvóDezanove e o segredo do soviético", de Ondjaki

 

Meu livro de julho de 2023

Se meu livro de junho foi o encantador  "Os da minha rua" (2007) , livro de minicontos  de Ondjaki, obra que comentei  AQUI ,  fiquei tão fascinada com esse autor que logo emendei outro dele,"AvóDezanove e o segredo dos soviéticos", também com a temática crianças, inclusive vencedor do Prêmio Jabuti de melhor livro infanto-juvenil em 2010. 

Ondjaki explica o livro :


Embora nesse livro Ondjaki tenha abandonado as pequenas histórias e escrito  um romance de aventura, bem ao gosto de jovens leitores, há muitas semelhanças entre os dois livros, se trata do mesmo cenário e tempo, a Praia do Bispo em Luanda  na década de 1990, quando Angola estava sendo dominada pela União Soviética e, naquela praia, construía-se um mausoléu para  abrigar os restos mortais de Agostinho Neto, quem decretou a independência de Angola de Portugal em 11 de novembro de 1975, sendo então o primeiro presidente do país. E o mais importante: novamente a história é contada a partir do ponto de vida de crianças que moravam naquele lugar.

Desta vez, no entanto, as crianças (não tantas quanto no primeiro livro), empenham-se em destacar o quando os soviéticos, os "lagostas azuis" não eram bem vindos ali, nas palavras do Espuma do Mar,  um andarilho cubano morador, quando interditaram a praia: 

"nunca fomos só a Rússia nem na soviet unión fechar nem abrir nem inaugurar nem invadir uma praia soviética...Pero, ustedes, reptíles equivocados " (p. 120)   

 E ouvindo estas coisas as crianças planejam uma grande aventura para tentar impedir que as construções na praia (suas casas), com todas as memórias, rituais e Estórias daquela gente,  sejam "deplodidas" (explodidas em português angolano) para  dar espaço à  construção do memorial que será um marco na  História oficial de Angola. 

Mas e a história, estórias, daquele povo? Os mais-velhos nunca contam nada, mas os menines (como chamavam os soviéticos)  vão ouvindo falas dispersas, vão sentindo o ambiente e sabem do risco de perderem seu maior tesouro: 

"nós, ali de cima do muro, sim, sem essa vida toda que os mais-velhos já tinham vivido, mas nós sabíamos de todas as pessoas e de todas as estórias que tínhamos visto e inventado, mais as que eram contadas, recontadas,  aumentadas pelo Espuma do Mar, com as tranças dele e as conchas penduradas no mar, estórias de kiandas (ser mítico que vive no mar) que também são sereias que o VelhoPescador disse que viu mas outros dizem que não pode ter visto, estórias de kimbundu (língua tradicional africana) , estórias do camarada VendedordeGasolina quando bebe e fala demais , estórias do tempo de antigamente, estórias da AvóMaria que não entendemos nada até hoje porque na escola nunca nos ensinam a falar kimbundu da AvóCatarina que abre e fecha janelas e muita gente anda a dizer que nós as crianças falamos à toa, que ela não está mais lá na casa da minha AvóNhé, que agora chamamos mesmo AvóDezanove, estórias da PraiaDoBispo no tempo dos tugas (colonizadores portugueses), com menos poeira que agora e as pessoas parece que falavam diferente mas também o país era afinal ocupado e sem independência da dipanda (independência de Angola), e ainda, para não dizerem que esqueci, as estórias todas que a AvóDezanove me conta, tantas, com tantos nomes, com tanta gente e roupas, com danças e pianos e fados e viagens e casos, com falase pensamentos e carinhos e pausas e silêncios que também fazem parte das estórias de depois do almoço que ela me conta. e tudo isso, às vezes, tantas vezes, não sei por quê, faz os mais-velhos pensarem que nós não vamos lembrar de tudo -quando um dia estivermos com os olhos parados a pensar na nossa poeirenta PraiaDoBispo. "  (p. 108-9) 

Coisa mais linda esse livrinho, não? Virei muito fã de Ondjaki 

Algumas postagens durante a leitura:












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