segunda-feira, 17 de junho de 2024

Livro de junho : " Oito contos de amor", Lygia Fagundes Telles e outras tentativas

 

Edição quase paradidática, mas um grande livro

Embora esteja lendo sempre, admito que enfrento bastante dificuldade em concluir as leituras que começo em 2024. empresto os livros da biblioteca mas as leituras não me prendem, sinto muita falta de um cenário como o de 2019/2020. quando eu podia escolher as leituras e tudo o que eu lia era bom e empolgante. Hoje em dia está difícil. empresto os livros da Biblioteca  do Sesc Pompéia, sem saber se vou conseguir concluir as leituras, como aconteceu.

Três livros ótimos, mas só conclui a leitura dos contos de Lygia,
que mais me apeteceu literariamente.


Embora não seja propriamente uma admiradora da cultura japonesa em geral, tinha lido ótimos escritores de lá, então dessa vez  emprestei o de uma autora japonesa, a Hiro Arikawa , o  "Relatos de um gato viajante" , que é um livro para gateiros e certamente um best seller no Japão, pois o tema dos animais é muito fofo. Fofo até demais, o livro não me prendeu. 
O "Contos crespos", de Cuti, que tem uma capa linda, eu tinha muita expectativa, afinal Cuti é o teórico que escolhi como base para falar da Literatura negro brasileira e  quando  comecei a ler, muito empolgada, cheguei a comentar que estava adorando :
"CONTOS CRESPOS: Em um grupo de leitura virtual, pediram uma foto do livro que estamos lendo,mesmo que eu esteja ainda no começo, foi com muito prazer que fotografei e comentei:  A capa é maravilhosa. Cada vez que eu  interrompo a leitura e depois retomo, antes de abrir, fico olhando aquela cabeça negra trançada, aquele couro cabeludo de onde nascem cabelos crespos de gente que vive e sabe muito bem sobre  tudo aquilo que Curti narra em seus agridoces "contos crespos".
Estou adorando!"
E estava adorando mesmo, mas logo percebi que não via nada de diferente para uma obra da literatura negro-brasileira em minhas pesquisas. Mas a ficção dele, infelizmente, não me prendeu, foi uma  leitura muito emperrada e acabei largando. Talvez  eu seja uma leitora mal acostumada, tolere!  

E tinha ainda a pequena seleta de contos de amor de Lygia. Desse, muito dificilmente eu não iria gostar, pois se trata de uma das minhas escritoras favoritas:

Eu que me atento para a forma como se escreve, amo Rosa e Lygia

De fato os contos me chamaram mais a atenção.

A capa


Última capa


Antes deles, adorei que a edição conta com trechos de um depoimento  de Lygia sobre seu trabalho literário  na Sorbonne,Paris,1993, durante um seminário sobre a autora. Amei alguns trechos como


E continua : "Mas o amor (e desamor) não estás sempre presente? Recorro ao humor, que é nossa salvação, ninguém é perfeito - e a loucura? Com suas infiltrações na rejeição. Um perguntador me olha agora com desconfiança, quer saber porque falo tanto na morte. Não sou inocente (o escritor não é inocente) e começo a dourar a pílula substituindo a perda, encerrado para o mistério."


Adorei também o trecho de depoimento que conclui a seleção , pois muito me identifico: 

"... o escritor que pode ser louco, mas não enlouquece o leitor, ao contrário, pode até desviá-lo de sua loucura. O escritor que pode ser corrompido, mas não corrompe. Que pode ser solitário e triste, mas ainda assim vai alimentar o sonho daquele que está na solidão." (Lygia Fagundes Telles. Depoimento na Sorbonne,Paris,1993)


 E não é a literatura nossa melhor companhia? Grande escritora essa dama Lygia 



Pois vamos aos contos. o índice da edição: 




Quando terminei de ler comentei :



Vamos comentar brevemente conto a conto:

1 As cerejas 
Agora eu tenho a grande sorte de não ter lido todos os contos Lygia Fagundes Telles, tenho muito a explorar. Quando li As cerejas hoje, percebi logo que é um dos grandes! Talvez o mais erótico dela que li (mais até que aqueles dos fálicos saxofones ). Tantas camadinhas: memória da infância x realidade, aparência x essência ,dúvidas, símbolos (cereja e sua "vermelhidão de loucura", cavalo x cavaleiro colados "formando um corpo só ", calor, relâmpago que, por um instante, ilumina tudo, os olhinhos estrábicos sem óculos da Madrinha que preferia não ver, o escorpião pegando fogo, perfume forte, decote, anjo cego,etc). E a visão da menina: será que viu mesmo aquilo? Será que "aquela gente teria existido"? A narradora não sabe ,nem nós. Mas a imagem iluminada pelo relâmpago ,do cavaleiro galopando "agarrado à crina do cavalo, agarrado à cabeleira da tia Olívia, os dois tombando ligeiramente azuis sobre o divã", real ou não a adoeceu e a marcou profundamente. Como tantas imagens da infância!

2 Pomba enamorada ou uma história de amor

Achei o conto mais irônico, até humorístico, da antologia. Não que deixe de abordar a terrível dor de amor, de forma bem romântica (no sentido literário, com tentativa de suicídio e tudo mais). A Pomba enamorada, protagonista, apaixonada pelo estúpido Antenor, é obcecada pelo moço,  mas tudo acontece de um jeito meio roteiro de folhetim, algo que não esperava de Lygia. No fim era para tudo terminar bem porque as coisas se acertaram aos poucos, mas o amor mal vivido, mal resolvido persegue a gente por muito mais tempo do que possamos supor. É disso que trata o conto.

3 As pérolas  (impressão de 2021)

Achei as pérolas bonito, gostei das imagens: As pérolas "rosadas e falsas" de Lavínia "cujo "entrechocar das contas produzia um som semelhante a uma risada", a varanda, o "Chopin de bairro", a lembrança da mãe de "olhos poderosos", que sempre já sabia de tudo e o ciúme doentio de Tomás, que justifica o clima de falsificação da trama (nossa única certeza está nas coisas assumidamente falsas, o resto pode ser suposição de uma mente ciumenta. Sim, há fortes referências ao Dom Casmurro, embora para mim Lygia seja mais palatável, então eu só posso aplaudir.


4 Herbarium
Um texto  belíssimo sobre amor e amadurecimento, remete a contos de fadas (Chapeuzinho Vermelho) ou aventuras fantásticas vividas em bosques, como "Sonho de noite de verão", de Shakespeare. No conto lygiano, uma jovem  que mora próximo a um bosque e recebe a visita de um primo botânico convalescente que não pode colher por si folhas, mas  a quem ela ajuda selecionando algumas para que, se ele as julgar raras , venham compor seu Herbarium. Acontece é que a jovem se apaixona por ele e, entendendo sua linguagem, lhe faz uma declaração de amor :"quando lhe entreguei a folha de hera com formato de coração, um coração de nervuras tementes se abrindo em leque até as bordas verslde-azuladas, ele ele beijou a folha e levou ao peito. Espetou-a na malha do suéter: 'Esta vou guardar aqui'. Mas não me olho nem mesmo quando sai tropeçando no cesto."(P.46) O primo gostava da garota, mas não da mesma forma que ela. O  amor lygiano tem mesmo esse gosto amargo do quase correspondido, mas não o suficiente! Mas a menina entendeu o botânico e tentou até o fim modificar o fúnebre destino do seu amor, ao tentar lhe esconder a folha solitária, com a  "forma aguda de uma foice, o verde do dorso com pintas vermelhas irregulares como  pingos de sangue"(47-8) sob a qual havia morrido um besouro. Ela colheu a folha/foice e foi andando "solene porque no mesmo bolso onde levara o amor levava agora a morte". (48) Mas tinha prometido a ele sempre dizer a verdade e quando lhe perguntou o que estava escondendo, sabia que era a hora de decretar, simbolicamente, a morte de seu amor!
 Uma rara joia, talvez a mais bela da pequena antologia!

5 A chave (impressão de 2021)

Um conto ótimo, a gente vai pela cabeça de Tom, o senhor que não está mais conseguindo acompanhar a jovialidade de sua esposa. O personagem  "velho"  diz  insistentemente a esposa mais jovem que se prepara para sair,  que precisa dormir, dormir, dormir... Chega a sonhar: "Se pudesse dormir ao menos aquela noite, enfiar-se na cama com uma botija, uma delícia de botija, criando assim aquela atmosfera terna entre seu corpo e as cobertas... Ô! A melhor coisa do mundo era mesmo dormir, afundar com uma âncora na escuridão, afundar até ser a proporia escuridão, mais nada." Nunca me identifiquei tanto!

6 Apenas um saxofone (impressão de 2021)

É um dos conto bem fechado em si mesmo, precisei ler mais de uma vez, porque ainda queria entender a narrativa, com o tempo fui aprendendo a ouvir a dicção de Lygia, mais vale apreender o que primeiro chama a atenção, porque o mais importante não é dito, às vezes nem mostrado! Essa prostituta,  apelidada Luisiana (berço do jazz) por seu antigo amante Xenofonte, o moço que era jazzista e tocava saxofone, do qual ela sentia tanta falta... mas onde estaria ele?


7 O encontro

O Encontro é mais um conto fantástico de Lygia, acontece quando a protagonista retorna ao bosque que tanto conhece, mas resolve explorar o que havia além do vale, se aproximar dos penhascos, que de alguma forma inexplicável ela conhecia, mesmo que nunca tenha pisado ali. Ao chegar lá, mergulha numa constante indecisão entre previsão do que aconteceria e memória do já acontecido, em um cenário assustador, mas ela sabia que era preciso “que eu não buscasse esclarecer o mistério, que não pedisse explicações para o absurdo daquela tarde tão inocente na sua aparência. Tinha apenas que aceitar o inexplicável até que o nó se desatasse, na hora exata”. Até que acha uma resposta possível que muito me interessou: Não, não estava sonhando. Nem podia ter sonhado, mas em que sonho podia caber uma paisagem tão minuciosa? Restava ainda uma hipótese: e se eu estivesse sendo sonhada? Perambulava pelo sonho de alguém, mais real do que se estivesse vivendo. Por que não? Daí o fato estranhíssimo de reconhecer todos os segredos do bosque, segredos que eram apenas do conhecimento da pessoa que me captara em seu sonho. “Faço parte de um sonho alheio” - disse e espetei um espinho no dedo. Gracejava mas a verdade é que crescia minha inquietação: “se for prisioneira de um sonho, agora escapo.” Uma gota de sangue escorreu pela minha mão, a dor tão real quanto a paisagem. O clímax é quando ela encontra uma moça vestida de amazona, esperando por um amor que nunca vinha, e que parecia viver em outro tempo e que não lhe era desconhecida. A identidade dessa personagem é o grande final do conto sensacional.  


A estrutura da bolha de sabão

Este texto eu  conheço e adoro faz tempo, mas não me lembro de ter escrito alguma coisa sobre ele. . Lembro vagamente de ver a Lygia pela primeira vez, sendo entrevistada em um programa de aTV do Serginho Groisman nos anos 90, eu devia ter uns 11 ou 12 anos, nunca me esqueço dela falar que o amor é frágil, lindo e leve como uma bolha de sabão, que pode ter sua estrutura rompida por qualquer coisa. Para mim este  é a imagem e o “conto de amor” de Lygia por excelência! É uma introdução sobre como adentrar no universo da sua ficção: nos jogos de ditos e não ditos entre a protagonista, seu ex marido e a atual esposa vemos surgir e se desenvolver a delicada estrutura da bolha de sabão : não é preciso muita coisa para ela voar e brilhar translucida, mas é preciso menos ainda para que ela estoure e vire uma espuma no chão; assim é o amor, nessa imagem poética LINDÍSIMA.

Que livro, senhoras e senhores, que livros!

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