Fazia tempo que eu não mergulhava nos meus amados cinemas africanos, ano passado eu não acompanhei nada, esse ano não assisti ao filme mauritano em julho (ainda pretendo, cinema da Mauritânia é um dos que guardo mais vivos na memória memória), mas esse é de Sembène, não podia perder ... Nem deu tempo de assistir completo antes do debate, mas foi tudo muito maravilhoso.
O filme é sobre o Massacre de Thiaroye, ocorrido no Senegal em dezembro de 1941, num campo de trânsito com ex soldados atiradores africanos que teriam lutado pela pátria França e contra as forças nazistas na segunda Guerra Mundial e então estariam concentrados, aguardando o pagamento do soldo e indenizações, para voltarem aos seus lares. Esses atiradores não eram apenas senegaleses, vinham de várias regiões da África e se encontravam sob o domínio militar francês.
No decorrer do filme, vamos percebendo que os militares franceses, seus ex companheiros de farda, parecem estar querendo confinar esse homens, enganando, tratando com racismo , como se fossem merecedores de menos comida ou benefícios do que os outros por serem negros, adiando o pagamento de seus soldos e não os deixando sair do campo.
Para os ex soldados, são muitas as questões que os impedem de ver que talvez estivessem sendo enganados com promessas falsas, pois estão vivendo seu retorno ao solo africano depois de um longo período fora e mesmo que esperassem ser recebidos como heróis de guerra, como qualquer ex combatente francês branco europeu, na verdade são tratados como negros, apesar de seu passado heroico, e mesmo que se revoltem, só recebem em troca mais promessas, não se dão conta realmente de que foram usados e poderiam ser descartados a qualquer momento.
Como esses ex combatentes tiveram contato próximo com a cultura do colonizador, muitas vezes os africanos já não confiavam neles e esse retorno à sua terra natal, é tema recorrente nos cinemas africanos, pois muitos cineastas , inclusive Sembène, só vão se dar conta do peso do colonialismo quando voltam à África, depois de uma experiência Europa. É nesse retorno que vão perceber que são apenas colonos e não importava muito o que fizessem de criativo (Sembène foi um dos que chegaram a estudar cinema na antiga URSS durante a Guerra Fria) ou mesmo de louvor à "pátria amada França", prestando serviço militar, sempre seria um negro inferior. E isso é muito evidente na cinematografia africana e especialmente na de Sembène.
Nesse contexto o filme destaca dois personagens principais.
Um deles é o senegalês Serge Diata, que era militar de alta patente e vivia em Paris com sua mulher branca e sua filhinha, mas após grandes batalhas, voltava ao solo africano para liderar seus companheiros na revolta contra os desmandos dos colonizadores. Diata é um negro diferenciado, teve acesso a educação europeia, é culto, conhece línguas, ouve música clássica e lê bons romances. Mas durante esse retorno à África percebe que nada disso lhe valeu, pois o povo da sua aldeia não confia mais nele, afinal não se casou com a aldeã que lhe era reservada e pior, casou-se com uma inimiga branca. Eles também o viam como alguém não confiável porque foi escolhido pelos franceses, não sabiam se podiam lhe dar poder total.
Ao contrário dos soldados, Diata podia sair do Campo livremente e foi assim que foi até a cidade de Dakar, tentou entrar em um bordel para tomar uma bebida, e foi duramente excluído por ser negro. Ali não importava que fosse militar, sendo negro, não podia entrar. Nesse mesmo dia, porque falava muito bem não só o francês, mas como também o inglês por conta dos romances que lia, alguns soldados americanos, que nada sabiam da situação dos soldados africanos ou franceses, o prenderam e espancaram. Isso causou uma revolta no campo e os soldados chegaram a sequestrar um soldado americano para trocar pela liberdade de Diata. Deu certo, mas no fim essa rebeldia só causou mais revolta entre os militares franceses e foi estopim para o massacre perpetrado por seus antigos companheiros de farda em Thiaroye.
Outro é o soldado Pays, que teria sido confinado nos campos de concentração alemão e por isso ficado sequelado. É tido como maluco. No entanto é Pays, com toda sensibilidade, que desconfia de que as promessas dos militares franceses, de pagar os soldos e libertar os soldados, é uma grande mentira, e que esses ex companheiros de batalha, na sua alucinação, são tão perigosos quanto os alemães. Desta maneira original (e quase genial ) o filme apresenta uma de suas grandes provocações, pois é na visão ingênua e anormal de Pays que Sembène aponta o tão negado colaboracionismo francês em relação aos ideais nazi fascistas durante a Segunda Guerra. Mas os ex atiradores, ao invés de ouvirem Pays, acreditam nas promessas francesas e festejam, sem saber que sua hora estava marcada
O fato é que em dezembro de 1941, na regiao de Thiaroye, os militares franceses assassinaram pouco mais de 30 africanos que haviam servido às forças armadas francesas.
O filme, como boa obra de Sembène, começa com a imagem do navio trazendo os ex competentes de volta a África de forma muito pomposa, mas essa pompa vai se apagando aos outros poucos até culminar com a chacina. No fim, incrivelmente, o filme se encerra com outro navio, com outros heróis ex combatentes voltando à África, como se aquele acontecimento trágico não tivesse acontecido ou nem fosse importante.
Dureza.
Quando terminei de assistir ao filme, fiz um comentário geral:
Terminei de assistir Campo de Thiaroye (1988), o filme de Guerra e mais masculino de Sembene. Nós na garganta de sempre com esse diretor e com filmes africanos ... e assistir nesse momento em que o mundo todo reverencia a França olímpica (eu não, nunca reverenciei) é mais indigesto ainda lembrar do colonialismo, do cinema como instrumento do controle colonial, da negação da França sobre o controle em campos e o massacre de Thiaroye (afinal é ela que narra a História Oficial, na qual isso nunca aconteceria), mas Sembene coloca o dedo na ferida e propõe a versão senegalesa dessa história trágica.
Ainda que tenha sido perseguido e censurado, esse é um filme que nosso querido Sembené se orgulhava de ter feito. Não é para menos, grande filme!
No debate,muitas coisas foram ditas, mas destaco uma referência que ainda pretendo conhecer
Como é bom voltar aos cinemas africanos 😉
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